Entrevistámos André Melícias, arquivista do Arquivo do Santuário de Fátima, um dos mais importantes arquivos da cristandade contemporânea.

(Archivoz) Sendo o Santuário de Fátima um dos locais de peregrinação da Cristandade atual, qual é a sensação de trabalhar num espaço com tão grande significado?

(André Melícias) Esta questão terá de ser respondida em duas partes, uma de âmbito profissional e outra de âmbito pessoal.

Profissionalmente, trabalhar no Arquivo do Santuário de Fátima é, simultaneamente, um grande desafio, uma grande responsabilidade e uma grande honra. Fátima é, como refere, um dos maiores centros de peregrinação do Cristianismo contemporâneo e isto eleva o patamar de exigência e rigor que enquanto profissionais nos devemos impor, seja pela visibilidade que a dimensão desta instituição dá ao nosso trabalho, seja, principalmente, pela consciência do impacto que tem a ação desta instituição, para a qual concorremos com a especificidade do nosso trabalho. É, efetivamente, um local privilegiado para se estar como profissional, pelo ‘mundo’ que nos dá, seja pelo contacto regular com pessoas e instituições de realidades geográficas, socioculturais e económicas muito diferentes da nossa, seja pela riqueza e diversidade do seu espólio arquivístico e biblioteconómico.

Numa dimensão pessoal, não escondo que, desde muito novo, tenho uma ligação profunda a este local. Cresci habituado a que, várias vezes ao ano, Fátima fosse o local de um dia em família, um misto de passeio e de peregrinação, que teve um grande impacto no meu crescimento pessoal. Numa área profissional em que nem sempre é fácil garantir a empregabilidade, ter hipótese de trabalhar num local que, além dos desafios profissionais que aporta, nos toca pessoalmente, é um privilégio.

(Archivoz) Quando é que foi constituído o arquivo do Santuário?

(AM) Desde cedo, o Santuário assumiu ser uma das suas funções a recolha, conservação e estudo das fontes relativas aos episódios fundadores de Fátima e ao desenvolvimento do culto a Nossa Senhora de Fátima. Se, num sentido mais lato, podemos dizer que o Arquivo se constitui a partir do momento em que, na década de 20 do século passado, se começa a desenhar a estrutura organizacional de enquadramento das manifestações cultuais e pastorais na Cova da Iria, se pretendermos entender o Arquivo enquanto unidade orgânica, teremos de procurar a sua génese na década de 50. D. José Alves Correia da Silva, bispo de Leiria entre 1920 e 1957, por provisão de 13 de agosto de 1955, criou no Santuário de Fátima o Museu-Biblioteca. Esta instituição, que cedo se confundiu com o próprio Santuário, tinha funções ligadas à recolha, gestão e conservação de espécies arquivísticas, além das biblioteconómicas e museológicas enunciadas na sua denominação. No entanto, a sua filosofia estaria mais próxima da de um centro de documentação e não tinha a seu cargo a gestão da informação produzida no âmbito das atividades administrativas do Santuário, assegurada a partir da secretaria.

A reorganização orgânica do Santuário, a partir de 1973, deu origem ao Serviço de Estudos e Difusão (SESDI), que assumiu e ampliou as funções do antigo Museu-Biblioteca. É desta época uma distinção clara entre os chamados “arquivo fotográfico” e “arquivo documental”, cujos impactos se fizeram sentir até data recente, pela existência de duas equipas distintas para cada um dos serviços de arquivo, então denominadas de secções. Com a reforma dos anos 70 o Santuário assumiu a necessidade de introduzir metodologias eficientes para a gestão da informação e documentação que produzia e, ainda que subsistisse uma clara distinção entre o arquivo histórico-erudito e o arquivo administrativo – frequente ao longo dos séculos XIX e XX – , foi levado a cabo, a partir do SESDI, um esforço de organização da informação, visível na elaboração e adoção de planos de classificação. A viragem do milénio traria um novo momento de evolução do arquivo, com a colaboração de entidades externas que, no caso do “arquivo fotográfico” conduziu à sua organização e à digitalização de uma considerável parte do espólio e, no caso do “arquivo documental”, ao início do projeto de gestão integrada que permitiu eliminar as barreiras entre o arquivo histórico e arquivo das diversas unidades orgânicas, promovendo uma gestão integral da informação, independentemente da sua idade e usos hipotéticos.

(Archivoz) O Dr. André Melícias como arquivista sente que existem diferenças no seu trabalho arquivístico, em relação a outros colegas de profissão? Quais os cuidados que este arquivo exige?

(AM) É frequente utilizar-se expressões como “arquivística religiosa” ou “arquivística eclesiástica” para designar a atividade que, enquanto profissionais, desenvolvemos neste tipo de organizações. Na minha perspetiva, devemos ter alguns cuidados na sua utilização para que desta não resulte a noção de que estamos perante uma subdisciplina arquivística. De facto, não existe arquivística religiosa, existe, isso sim, a arquivística que, enquanto conjunto de teoria e prática, é aplicada ao contexto específico de organizações religiosas, estejam ligadas à Igreja Católica ou a qualquer outra realidade eclesial. É neste sentido entendo deverem ser utilizadas aquelas expressões ou outras semelhantes.

Partindo desta perspetiva, assumo que não existem diferenças entre o meu trabalho e o de outros colegas de profissão, com exceção daquelas que são originadas pela diferença dos sistemas de informação arquivística que trabalhamos, sejam elas geradas por especificidades da informação e documentação geridas, sejam pelas especificidades do ambiente regulador – especialmente visíveis nas organizações religiosas –, da estrutura orgânico-funcional ou dos meios disponíveis.

(Archivoz) Dada a relevância deste arquivo e a curiosidade dos Media, como é efetuada a comunicabilidade da informação arquivística de Fátima?

(AM) O fim de qualquer arquivo é o de ser comunicado e, desse modo, contribuir para o enriquecimento da ação administrativa, científica e cultural dos seus utilizadores. As diferentes estratégias que cada serviço de arquivo utiliza para fazer essa comunicação resultam da especificidade de cada um ao nível da visão, dos objetivos e também dos meios de que dispõe. No caso do Arquivo do Santuário, podemos entender a comunicação da informação arquivística em torno de dois eixos principais: o da relação com o utilizador e o da comunicação em fóruns científicos.

O apoio aos nossos utilizadores, tanto internos como externos ao Santuário, é feito de modo personalizado. Fátima, enquanto espaço de devoção, é uma realidade com pouco mais de um século e, por isso, boa parte do nosso arquivo está ainda sujeita a limitações próprias dos arquivos contemporâneos, nomeadamente possíveis restrições ao acesso e comunicabilidade da informação e documentação arquivísticas. Com o objetivo de permitir o acesso franco ao maior volume possível de documentação, apostamos, por um lado, no aprofundamento do nosso conhecimento acerca do espólio que custodiamos e, por outro, no conhecimento das necessidades informacionais do utilizador, assumindo claramente o papel de mediadores ativos e colaborantes.

Outra dimensão é a da comunicação em fóruns científicos como modo de divulgação do nosso espólio e de promoção da reflexão em torno de questões técnicas e científicas que nos dizem respeito enquanto profissionais e interessam especificamente à gestão do espólio que o Santuário nos confia. Neste sentido, tanto eu, como o diretor e outros técnicos do Departamento de Estudos – que sucedeu, em 2018, ao SESDI enquanto unidade orgânica de tutela das áreas do Arquivo e da Biblioteca – temos participado com comunicações em diversos eventos científicos nacionais e internacionais. Temos também apostado na organização de jornadas científicas que, partindo da nossa realidade, pretendem refletir temas de interesse para a os profissionais das ciências da documentação e informação, entre outros. Nesse sentido, foram organizadas, entre 2018 e 2020, a I e II Jornadas de Arquivo, bem como as I Jornadas de Biblioteca, nas quais procurámos trazer à discussão questões como a proteção de dados nos arquivos das Igrejas, o papel dos arquivos audiovisuais para o estudo da história contemporânea, bem como o papel das bibliotecas eclesiásticas como repositório do conhecimento humano. Poderemos incluir aqui, ainda que num âmbito mais cultural do que científico, a colaboração que, durante quatro anos, tivemos com o jornal «Voz da Fátima», assegurando a coluna «Peça do mês» na qual explorámos o espólio do Arquivo e também da Biblioteca.

(Archivoz) A nível de utilizadores: Quem são? O que procuram?

(AM) O Arquivo do Santuário responde tanto a utilizadores internos como a utilizadores externos à instituição, no entanto, poderemos dizer que a maior parte da nossa atividade tem como destino os utilizadores internos. A informação e a documentação são ativos estratégicos para qualquer organização, no apoio à tomada de decisão, ao normal andamento dos processos administrativos e, um aspeto muito relevante no Santuário, à produção de conteúdos científicos, culturais e pastorais. O recurso que os diferentes departamentos em que está organizado o Santuário fazem do Arquivo demonstra essa importância estratégica e faz-nos acreditar que estamos a conseguir desempenhar corretamente a função primária que nos é solicitada.

Os utilizadores internos solicitam desde documentação contabilística a documentação de cariz arquitetónico, passando por registos paroquiais e correspondência, entre outra documentação relativa a todos os aspetos da vida do Santuário, desde o acolhimento de peregrinos à gestão do alojamento nas casas de retiros, passando, claro está, pela liturgia e atividade pastoral. Devemos igualmente referir a importância das espécies fotográficas, geridas a partir do núcleo audiovisual do Arquivo.  Se, tendo em consideração números de 2020, pensarmos que, num universo de 5710 imagens licenciadas, 5379 foram-no para uso interno, percebemos facilmente o contributo do Arquivo para a produção de conteúdos pastorais, culturais e científicos do Santuário.

Os utilizadores externos que nos consultam têm origens e objetivos bastante distintos, mas é possível delinear alguns perfis-tipo, a começar pela comunidade académica e científica, que nos procura no âmbito do desenvolvimento de dissertações, projetos de investigação ou produção de publicações. As áreas de estudo deste grupo, longe de se fixar somente nas ciências religiosas, vão desde a história e história da arte, até à antropologia, geografia, sociologia, economia, passando pelo turismo, pela arquitetura, engenharias e até pela proteção civil. Temos também investigadores que, por razões pastorais ou devocionais, pretendem esclarecer aspetos da história e Mensagem de Fátima e são direcionados para as fontes apropriadas. Finalmente, poderemos referir a existência de utilizadores originários de empresas ou gabinetes de estudo e que nos procuram no sentido de obter informações, nomeadamente estatísticas, para apoio a estudos de mercado.

(Archivoz) Referiu num dos seus trabalhos uma interessante série documental denominada “Cartas a Nossa Senhora”. Pode descrever-nos esta série?

(AM) A série «Correio de Nossa Senhora», resulta da prática de os peregrinos deixarem no Santuário, nomeadamente na Capelinha das Aparições, cartas, pequenos bilhetes ou fotografias com mensagens que dirigem a Nossa Senhora. Também se dá o caso de os peregrinos enviarem as suas mensagens por terceiros, por correio e, ultimamente, até por email. Não sabemos desde quando existe esta prática, mas percebemos que se foi impondo na ritualidade própria deste local e deu origem à série documental que tem um maior ritmo de crescimento e que é, na minha opinião, uma das séries mais relevantes do Arquivo do Santuário, porque reflete aquilo que justifica a existência do próprio Santuário, isto é, a fé e os motivos que, ao longo do tempo, trouxeram os peregrinos a este espaço cultual.

O estudo desta série permite aceder a várias camadas de informação, que vão desde a abordagem direta ao pedido ou agradecimento que serviram de mote à criação do documento, até níveis mais profundos, como o da mentalidade do remetente, a realidade do seu contexto familiar, político e económico, relevantes para o estudo científico e também para o trabalho pastoral. No entanto, levanta também alguns problemas, nomeadamente o do ritmo de crescimento – já ultrapassa os 350 metros lineares – e da dificuldade da sua comunicação, devido à necessidade da proteção da intimidade dos que lhe deram origem. Após reflexão foi estabelecido um conjunto de regras, que implicam o acesso diferido e a minimização dos dados, que permitiu que fosse dado acesso de uma parte dessa documentação, tendo já dado origem a algumas conferências e publicações.

(Archivoz) Recentemente foi anunciado nos meios de comunicação social que o arquivo da Irmã Lúcia está a ser tratado por um grupo de especialistas. O Arquivo do Santuário de Fátima está envolvido?

(AM) O Arquivo do Santuário de Fátima detém espécimes do punho de Lúcia, entre os quais se destacam os documentos conhecidos como as quatro primeiras «Memórias», propriedade da diocese de Leiria, que aqui se encontram em depósito. O espólio que refere como «Arquivo da Irmã Lúcia» é custodiado pelo Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, que é responsável pelo projeto de tratamento em curso e no qual o Arquivo do Santuário de Fátima não está envolvido. O conjunto documental é composto por, entre outros, um grande volume de correspondência recebida e enviada por aquela religiosa no período em que integrou aquela comunidade religiosa. É de saudar o esforço de preservação e organização de um espólio riquíssimo de uma figura ímpar da nossa história recente e que diz tanto ao Santuário de Fátima e aos seus peregrinos.

(Archivoz) Vivemos num mundo cada vez mais digital e imediato. Existe algum projeto de disponibilização online do Arquivo do Santuário?

(AM) Os projetos de digitalização e disponibilização online em larga escala implicam um conjunto de recursos humanos, técnicos e financeiros bastante considerável, pelo que o esforço que implicam torna necessária a sua ponderação cuidada. Se considerarmos as características deste arquivo, nomeadamente a sua idade, e as restrições de acesso que se podem impor, não nos parece viável equacionar um projeto de digitalização e disponibilização online em larga escala.

A prática em relação a este tópico tem sido a da digitalização, seja por meios próprios, sejam por meios externos, nos casos em que a salvaguarda da informação ou a necessidade da sua comunicação assim o impõe.

 


Entrevista realizada por: Alexandra María Silva Vidal

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