Entrevistámos Isabel Victor, Diretora do Museu Sporting
(Archivoz) Fale-nos um pouco do seu extraordinário percurso académico e profissional até chegar a diretora do Museu Sporting, em abril de 2017.
(Isabel Victor) Verdadeiramente extraordinário foi o que vivi e aprendi com as pessoas que se foram cruzando no meu caminho, em diferentes planos e etapas da vida.
Antes de tudo, no plano familiar porque sempre me foi inculcado o valor da liberdade como bem fundamental, o estudo, a busca do conhecimento, como a herança mais valiosa e a fraternidade como suporte de vida.
Considero-me uma pessoa bafejada pela sorte. Tentei sempre afastar as nuvens dos meus dias, trazer leveza à vida, à minha própria vida e à dos outros. Gosto de pessoas, dos seus enigmas e paixões, também das suas loucuras. Acredito que a beleza e a bondade são as únicas formas de mudar o mundo, interior e exterior.
Um dos filmes da minha vida, um dos que mais me emocionou, foi o que conta a história improvável e fascinante de Cheval e o seu Palácio ideal, a obra surreal a que dedicou mais de trinta anos da sua vida. O carteiro Joseph Ferdinand Cheval (1836-1924) que na sua caminhada diária de trinta quilómetros na comuna de Hauterives, França, para entregar correio, foi colecionando pedras e pedras, de todas as formas e feitios e que, com elas, construiu um sonho, o Palais ideal, um palácio inabitável, com vinte seis metros de comprimento e dez de altura, cheio de formas peculiares e desiguais, profusamente decorado com esculturas de animais, fadas e seres mitológicos. Um lugar mágico para contar estórias e sonhar, que em muito se assemelha à busca de um ideal-tipo (Weberiano) de museu, menos tecnicista, mais poético e transcendente, algo que não corresponde à realidade, mas que pode servir para a sua compreensão. Que parte de uma ideia livre de arquétipos, para ir ao encontro do próximo, específico e singular.
No plano académico, porque pude e continuo a ir podendo, verdadeiro privilégio, compor um puzzle de formação diversificado que, consciente e/ou inconscientemente (porque nem todas as escolhas são imediatamente percetíveis), vai encaixando contributos de diferentes áreas disciplinares, perceções e interações, que se vão concertando numa figuração poliédrica, complexa, que corresponde à imagem que tenho dos museus na contemporaneidade: múltiplos, diversos, por vezes paradoxais, mas sempre generosos.
Os museus são, talvez hoje, nas sociedades complexas, o único lugar onde se contratualiza e celebra o ato de dar, de doar – entregar a posse; fazendo lembrar as lógicas da Sociabilidade e da dádiva, fenómeno social total a que Marcel Mauss em “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” (1974), se refere, evocando as prestações e contraprestações, as práticas obrigatórias e livres (voluntárias) do potlatche, em que a palavra, a transitividade dos lugares e as múltiplas linguagem(s), são essenciais.
Também o Museu, melhor dizendo, o facto museal, na asserção de Waldisia Rússio Guarnieri, institui-se como o meta-lugar do compromisso social, do dito e do não dito, do que se vê e do que se intui. O facto museal enfatiza a importância da relação entre a pessoa, o objeto, o seu contexto e descodificação, assumindo que “(…) cabe ao museu possibilitar a leitura, não do símbolo, mas do elemento simbolizado, penetrando na raiz mesma do Humanismo.” A progressiva desmaterialização do conceito de museu, a crescente adoção de novas tecnologias para exposição de acervos oriundos bancos digitais, leva-nos a redefinir o lugar do objeto, a sua contingência física-temporal no mundo atual. O que é hoje o facto museal e/ou facto museológico e como se manifesta? Qual o posicionamento dos profissionais? E a noção de território. Diria, fazendo eco da ancestral sabedoria, que o território são as pessoas e que o resto é paisagem. Também os museus sem as pessoas se reduzem a uma inóspita paisagem.
A Museologia, é a ciência do museu e das suas relações com a sociedade. Campo interdisciplinar, ciência aplicada, que condensa em si práticas aparentemente distintas que aproveitam de várias áreas do conhecimento, com enfoque para as Ciências Sociais, Ciências da Linguagem, Economia e Gestão. As artes performativas e as expressões artísticas são, ou deveriam ser, as linguagens privilegiadas dos museus – de todos os museus, independentemente da sua temática e/ ou vocação.
No plano profissional, tive o privilégio de ter sempre ao meu lado as melhores pessoas e aprender com as mais diversas experiências. Trabalhar em projetos inovadores de educação artística e patrimonial, em contextos profundamente conectados com as comunidades e em museus com vocações e temáticas muito diversas: Arte (eminentemente sacra), pintura, escultura, ourivesaria, no Convento de Jesus (Setúbal), onde iniciei a minha carreira em museus (final dos anos 80 de 1900 até ao inicio do novo milénio) com o eminente professor da Faculdade de Belas Artes, ex-presidente da APOM, na altura conservador do museu e Fernando António Baptista Pereira. Foi um tempo em que se trabalhava com meios muito escassos. Tempos de pioneirismo, movidos pelo entusiasmo e pela urgência (era tudo tão novo … nós também éramos novos e era tudo urgente, até o amor!). Tempos em que se realizavam exposições completíssimas, grandes produções com pequenas equipas, mas com pessoas muito preparadas, a trabalhar de forma articulada incluindo carpinteiros, luminotécnicos, artistas plásticos, a partir de guiões bem delineados. Era um trabalho de artífices da palavra e do gesto que, na busca da perfeição, não poucas vezes, discernindo soluções no momento, porque as condições assim o exigiam, talhavam o fato em cima do pano, como o bom alfaiate, viam nascer o dia a montar a obra. Havia um frenesim.
Esse foi o meu tirocínio na prática complexa, intelectualmente exigente e muito desafiante, que é criar narrativas, realizar exposições, a partir de temas da história local e /ou universal, também sobre temas transversais, éticos e filosóficos (como a natureza e sentido da palavra “cuidar” num museu que antes tinha sido hospital, instalado num antigo convento) e fazer, fazendo. Passar da teoria à prática. No campo da Educação Patrimonial foi também um tempo em que não se parava, riquíssimo de experiência(s), envolvendo a comunidade, ao lado da minha colega e amiga, Ana Duarte, museóloga, com forte envolvente pedagógica, não formal, artística, que fazia do museu um lugar para brincar, com toda a carga emocional e liberdade que o termo brincar traz ao museu. Brincar é preciso e rir também. Os portugueses (eu diria, os museus) têm que se “desengravatar”, como dizia Vinícius, o poetinha, carinhosamente, referindo-se ao povo português, numa memorável tertúlia, nos recônditos anos 70, em Casa da Amália.
Depois veio o Museu do Trabalho Michel Giacometti, antiga fábrica de conservas de peixe, também em Setúbal, junto ao rio, em que fui coautora do programa museológico e expositivo, mais uma vez com a Ana e o Fernando António, compagnons de route, participação de investigadores e mais tarde, coordenando uma equipa incrível que cresceu no museu, que se fez com o museu e que fez escola. Mais uma vez, museu-laboratório social da memória, museu- expedição no território, um novo olhar da Sociomuseologia , inspirado no olhar de Maria Inez Mantovani e no seu projeto para o Museu da cidade de São Paulo, repensando o conceito e a metodologia de museu de cidade (Tese de doutoramento em Museologia, 2009, publicada em “Cadernos de Sociomuseologia”, revistas.ulusofona.pt).
A coordenação da Rede Portuguesa de Museus e a Direcção do Departamento de Museus, do Instituto dos Museus e da Conservação, na transição da primeira década de 2000 para a segunda, foi um tempo breve, mas muito intenso, pelos melhores e piores motivos. Falando dos melhores porque os outros são pedras no caminho (também as há, porque todos nós somos feitos de ganhos e perdas), foram tempos extraordinários de varrimento de todo o país, de contacto com museus e equipas que eram e são, muitas delas ainda hoje, o pilar dos museus portugueses. Emociona-me ainda hoje falar do que vivi nessa altura. Dava outro capítulo. Fica o meu tributo a quem, comigo, no meu tempo, fez parte desta aventura: Ana Margarida Campos; Clara Mineiro; Claúdia Freire; Gabriela Carvalho; Maria Susete Magno; Miguel Crespo; Roberto Leite e, saudosamente, postumamente, António Manuel Marques Serras.
No sector privado, fui consultora convidada da MUSE- Museums & Expos, onde tive contacto com projetos e logicas de gestão empresarial que me ofereceram uma visão de serviços e mercados num campo ainda muito pouco explorado em Portugal.
Atualmente e desde Abril 2017, no Museu Sporting, integrando o quadro de profissionais do Sporting Clube de Portugal, como diretora do museu, na dependência institucional do clube, em que o museu é organicamente equiparado a departamento a par dos demais na mesma linha de report. Trata-se do desafio de uma vida e uma paixão, porque ao invés do ditado, diria que não há amor como o último.
Encaro esta fase com imenso entusiasmo, com enorme curiosidade pela novidade do tema, pela expectativa que o mesmo comporta e, sobretudo, pela oportunidade de poder contribuir para a formação de uma equipa profissional, multidisciplinar, comprometida com a missão, valores e visão do museu. O edifício humano é o intangível mais valioso do museu e o garante da sua sustentabilidade. A noção de património vinculada ao sentido de pertença, incorporando noções de cultura, identidade e memória, exige novos olhares e outras novas competências sociais e profissionais.
O Museu Sporting tem a responsabilidade e ambição de ser humanamente tão grande como o clube, em honra aos ideais progressistas dos seus fundadores que, no advento do séc. XX, precisamente em 1906, ano da fundação, sob a batuta de José Alvalade, alinhado com os mais esclarecidos da época no que toca ao pensamento desportivo, higiene, regulação, mulheres desportista, espaço público e recintos apropriados, normas, preconizavam o desporto para todos, sem atender a género ou condição, defendendo a diversidade desportiva – o ecletismo e práticas saudáveis, em toda a sua asserção, física e mental.
Voltando ao plano académico, a licenciatura em Sociologia, no ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, na década de 80 do séc. passado, foi o maior esteio para o que vinha a seguir. Vivia-se a efervescência dos verdes anos. Abril de 74 escancarou as portas do liceu. Tudo seria diferente. O cavalo tomou Troia. O curso de Ciências do Trabalho, criado em 1972, foi transformado na licenciatura em Sociologia, a primeira do país.
Sempre curiosa relativamente às pessoas, movimentos e fenómenos sociais, encontrei no ISCTE de então, um ambiente universitário estimulante e excelentes professores. Mestres do pensamento crítico, da Antropologia Social, da Economia política e da História Contemporânea; sobretudo, pessoas inspiradoras, humanistas, de grande craveira intelectual, que marcaram indubitavelmente o meu percurso e a quem sempre agradeço: Mário Murteira; Jorge Correia Jesuíno; Joaquim Pais de Brito; João Moreira Freire; Filomena Mónica; Vítor Matias Ferreira; Juan Mozzicafreddo; Raul Iturra; Robert Rowland; Jose Manuel Paquete de Oliveira; Isabel Pimentel Guerra.
Pelo meio ficou a minha passagem pelo mestrado em Comunicação e Cultura, com a coordenação científica do emérito académico da UNL/FCSH, Adriano Duarte Rodrigues, que infelizmente não conclui, porque nem para tudo estamos preparados e eu não estava. O mestrado estava essencialmente virado para a Comunicação Social e esse não era, na altura, o meu foco, mas cito-o porque, apesar de não o concluir, fui colher nele importantes ensinamentos, sobretudo no domínio das Ciências da Linguagem e Semiologia, que mais tarde, nem eu sabia, me viriam a ser referenciais no domínio das estratégias discursivas dos museus, gramáticas, sociabilidades e interações.
No campo específico da formação em Museologia e seu aprofundamento, encontrei inspiração na Museologia nórdica e no pensamento de Per Uno Agren, saudoso amigo a quem presto póstuma homenagem. Com Per Uno, investigador e museólogo sueco, a viver na recôndita Umea, muito perto da Lapónia, mas cidadão do mundo, conhecedor de Portugal, amante do pensamento crítico e da Museologia, nasceu em 1991, o projeto de uma visita de estudo de quatro profissionais de museus portugueses a museus suecos, em que tive o privilégio de participar com a Ana Duarte, Clara Camacho e Jose Gameiro. A partir daí com o que colhi do exemplo dos museus suecos, dos seus profissionais, da sua profunda inserção nas comunidades, na contemporaneidade dos temas e problemas, alguns bem fraturantes, que já nessa altura eram abordados, a forma e método de discernir e abrir a discussão, a participação da comunidade cientifica, as estimulantes discussões com os profissionais, com os parceiros dos projetos, as inesquecíveis vivências em casa dos nossos colegas suecos, a sua afabilidade, que perdurou, o consolidado sistema sueco de museus e a enorme atenção dada à ação educativa, influenciaram para sempre o meu trabalho e a visão descomplexada dos museus. No meio da neve e das longas noites, os museus suecos que visitámos eram quentes, afetuosos, coloridos e muito luminosos. Cheios de crianças, música, expressão dramática, estórias, bolinhos, salas de estar, lugares para ler e conversar. Mais tarde, em 2000, quando começou a ser delineada a Rede Portuguesa de Museus, com a Clara Camacho à cabeça e segundo a própria afirma, em Informação ICOM.PT, serie II, número 2, ponto 13 – in memorian, Setembro- Novembro 2008, muitas das recomendações vertidas nos relatórios de Per Uno, entre 1976-79, na sequência das visitas que realizou aos museus portugueses, especialmente museus locais, como os de Vila Franca e Setúbal, como consultor, no âmbito da missão UNESCO, de aconselhamento, a pedido do governo português, deram força à criação de uma rede de museus em Portugal. Per Uno Agren, realizou também em 1978, seminários em Guimarães, Ceia e Faro, onde segundo palavras da Maria João Vasconcelos, em Informação ICOM.PT, serie II, número 2, ponto 13 – in memorian, Setembro- Novembro 2008, a então diretora do Museu Nacional Soares dos Reis, inserida num grupo de trabalho que reunia no Museu de Arte antiga, assessorou o consultor UNESCO e o acompanhou nesta fase, dizia que, em sintonia com o pensamento de Georges Henri Rivière, indubitável referencia, Per Uno Agren mostrou preocupação com o desfasamento entre as coleções dos museus locais e a vida concreta das pessoas, das comunidades, as suas referencias identitárias, memórias e culturas. Nos vários sítios por onde passou reforçou sempre a importância dos programas museológicos refletirem a realidade local e o papel dos mediadores nas equipas dos museus. Sobre este tema muita coisa se fez, mas também muito ainda está por fazer e há mesmo casos em que regrediram.
Concomitantemente e num contexto completamente diferente, mas em tudo complementar, a frequência e conclusão da primeira especialização em Museologia Social na Universidade Autónoma de Lisboa, Luis de Camões, em 1991, com a coordenação científica do professor Mario Moutinho, abriu portas a muitos profissionais, pioneiros da Nova Museologia em Portugal, em que, orgulhosamente, me incluo. Foi o início de um sobressalto crítico do “fazer museológico”, com assento na academia, teoricamente fundamentado, respaldado pela prática consumada, em Portugal e no estrangeiro, de maioria do corpo docente. Foi posta à prova a forma de pensar os museus, o seu papel na sociedade e abaladas muitas das certezas que imperavam junto dos profissionais. Esta especialização gerou oportunidades de mudança e influenciou projetos, sobretudo nos museus locais de tutela autárquica. Realidade ampliada pelos “Encontros Nacionais Museologia e Autarquias” (1990-2013), organizados pelo MINOM.PT e o departamento de Sociomuseologia da ULHT, em parceria com camaras, museus, coletividades e juntas de freguesia de todo o país. Até 2013, realizaram-se ao todo 17 encontros com o objetivo de aproximar a museologia local, os projetos municipais, o trinómio cultura/ património/ educação e o meio académico, possibilitando a troca de saberes, indutores de novas e melhores praticas.
Os últimos anos têm sido muito ricos na troca de ideias, no ensino da Museologia e esses novos ventos sopram fortes do outro lado do Atlântico. Por três vezes fui chamada a lecionar no Mestrado em Museologia na USP – Universidade de São Paulo, coordenação científica e pedagógica da professora Maria Cristina Oliveira Bruno, a quem deixo a minha homenagem, pela vasta bibliografia sobre o pensamento museológico brasileiro e sua qualidade teórica, sempre ao arredio das modas, mas profundamente atual.
Outras pessoas do panorama da museologia brasileira me marcaram positivamente, influenciaram o meu trabalho e com algumas, para sempre, estabeleci relações de amizade: Maria Inez Mantovani criadora da prestigiada Expomus e autora da tese de Phd Museologia – “Expedição São Paulo – bases para o programa de um Museu para a grande metrópole paulista”; Mário de Souza Chagas , diretor do Museu da Republica, Rio de Janeiro ( eloquente poeta – professor – museólogo); Manuelina Maria Duarte Cândido ( Professora de Museologia na Universidade de Liège, incansável investigadora e autora do livro “Gestão de Museus – Um desafio contemporâneo”. Com muitas outras pessoas, profissionais de museus brasileiros me cruzei e muitas mais admiro, como as que fundaram e atuam no SISEM – SP, Sistema Estadual de Museus de São Paulo. Igualmente guardo uma memoria fortíssima do Museu da Língua Portuguesa e da sua equipa, assim como da Pinacoteca de São Paulo, do seu diretor, da sua equipa e do Museu da Resistência que lhe é contiguo.
Em Portugal e Espanha, um bem-haja, à Mercedes Stoffel Fernandes, coautora do premiado Museu da Comunidade da Batalha, minha companheira dos da Museologia, da docência, da escrita e de tantas outras aventuras. Também a Encarna Lago, Rede Museística de Lugo, pioneira do MINOM em Espanha, pela bravura, obrigada. Ainda em Espanha, mas cidadão do mundo, sempre disponível e próximo, Juan Sandoval, Director- Conservador do Museo de Bellas Artes de Murcia, influencia e inspira o nosso caminho. A Aida Rechena , Directora do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, Peniche, Phd em Museologia e docente na ULHT, pelo seu percurso , exemplar, batalhador , mas acima de tudo pela sua serenidade, faz-me sentir orgulho na profissão de museóloga. Ao Filipe Trigo, designer no Metro de Lisboa, pela generosidade e talento, pela capacidade de transformar guiões meio aborrecidos em extraordinárias exposições, porque sem ele e a sua amizade, não era a mesma coisa, obrigada.
À Maria Miguel Cardoso, porque é uma museóloga de exceção a quem devo os melhores anos da minha vida em museus. Obrigada, Maria! Que me perdoem os restantes colegas e amigos, vou arrepender-me de ter começado esta lista, mas falar da importância das pessoas, do que gosto das pessoas, e não as nomear era como se não existissem para mim. Se fui ingrata, desculpem. A memoria é seletiva, todos sabemos. Tantas outras pessoas me ajudaram a fazer caminho, mas estas que nomeei e a minha família, fazem parte de mim própria – são eu! (o corretor ortográfico vai, certamente, censurar esta liberdade)
(Archivoz) Em 2005 concluiu com excelência, na ULHT – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, o mestrado em Museologia, com a dissertação intitulada “A Qualidade em Museus – distinguir entre museus com qualidades e a qualidade em museus”, sob a orientação científica do professor doutor Mário Caneva Moutinho e a coorientação de António Ramos Pires, professor e autoridade em Portugal na área dos Sistemas da Qualidade. Quais os fundamentos e principais conclusões a que chegou na investigação que desenvolveu?
(Isabel Victor) A dissertação intitulada “Os Museus e a Qualidade – distinguir entre museus com qualidades e a qualidade em museus “, defendida em 2005 para obtenção do grau de mestre, está publicada nos “Cadernos de Sociomuseologia “, número 23, edição Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2009, Lisboa.
Este estudo debruça-se sobre o impacto dos museus na sociedade e a necessidade premente de avaliação, ferramentas e indicadores de desempenho, muito para além da mera contabilidade de públicos. O Museu enquanto prestador de serviços, espaço de criação e inovação, avaliado pelos resultados obtidos e pelo valor gerado para a sociedade.
Partiu de uma inquietação: como avaliar o impacto dos pequenos museus locais, em que os projetos se fundam numa rede colaborativa de parceiros, atores, e nem tanto em públicos e exposições? Pela via das lógicas dominantes, baseadas na contabilidade de públicos, mesmo que recorrendo a análises qualitativas, nunca estes museus poderiam ser considerados, porque esse não é o seu foco. Desta inquietação nasceu a busca de formas alternativas de avaliação, interna e externa, essencialmente centrada nos processos e nem tanto nos produtos finais _ uma museologia processual, orientada para os resultados.
Avaliação interna e externa, critica e pedagógica, que visa a melhoria continua dos processos e procedimentos, a transparência de gestão e satisfação dos cidadãos – clientes. Englobando nesta categoria os próprios colaboradores dos museus, transversalmente e em todos os patamares da cadeia operativa.
As ferramentas da Gestão da Qualidade trazem aos museus autonomia, maturidade, empoderamento das pessoas, compromisso, transparência e uma cultura organizacional, rara nos serviços da cultura, baseada na corresponsabilização e constante monitorização dos processos, que criam rotinas de funcionamento, estabilizam procedimentos e libertam os museus e as suas equipas, para a função primordial – dispor de qualidade de tempo para escutar e auscultar as pessoas, envolver, envolver-se, criar e gerar valor.
Relativamente á Qualidade em Museus é, no meu entender, extremamente importante que se prossiga a investigação sobre o tema, cruzando fontes, a partir da experimentação , casos de estudo, em museus portugueses muito raramente, mas abundante em museus internacionais de referencia e se procurem definir as categorias de análise, variáveis e indicadores, inerentes aos museus e a serviços da cultura, de forma a avaliar, autoavaliar, medir, comparar resultados de desempenho e o enorme valor que estes geram para a sociedade, raramente evidenciado em relatórios técnicos.
Medir o desempenho dos museus pelos clássicos “Estudos de públicos” e suas grelhas de análise é, na minha opinião, reduzir o museu às exposições e à entourage, lojas e outros expedientes, deixando de fora a possibilidade de, medindo/comparando, plasmar em índices e números, o valor gerado pelos museus nos serviços que prestam (emprestam) à memoria, à gestão da informação e acesso ao conhecimento, sua produção e disseminação, importante ativo capaz de gerar benefício económico ou de outra natureza.
A inexistência de instrumentos de medida da qualidade total dos museus, enfraquece o diálogo com os outros parceiros e organizações (stackeholders), reduz a capacidade negocial, desvaloriza as profissões ligadas aos museus e seus os profissionais. A aplicação das ferramentas (frameworks ) importadas de outras áreas da sociedade visam colocar os museus a par das demais organizações no que toca ao seu desempenho – visam a reusabilidade e portabilidade das soluções, suas possibilidades e benefícios, também a sua sustentabilidade. Os museus nas organizações, públicas e/ou privadas, em que estão inseridas, mais do que um simples repositório e/ou a resposta a um target, constituem um ativo que reforça a identidade, empodera as pessoas e as marcas.
A Gestão da Qualidade em Museus corresponde a uma mudança de paradigma – significa passar do museus-produtos ao museu-resultados. Enveredar pela Museologia Processual.
(Archivoz) Como referido, é diretora do Museu Sporting, desde abril de 2017. Ao fim de cerca de 4 anos e meio nesse cargo, que balanço faz do exercício do mesmo?
(Isabel Victor) O balanço que faço é extremamente positivo. Pelas razões que evoco no início da entrevista, pela aprendizagem, as pessoas com que me vou cruzando, a elevada expectativa de quem nos visita, mas sobretudo pela possibilidade de contribuir para formar uma equipa profissional, multidisciplinar, com elevados padrões de qualidade e compromisso com a missão, valores e visão do museu, valeu a pena! Está a valer a pena ter sonhado o que sonhei, valeu a pena, como reza o conhecido fado do indefetível sportinguista Mário Moniz Pereira – o Senhor Atletismo.
Para além destes objetos, existem outros importantes documentos em suporte papel, fotografia, filmes. A estes juntam-se recentemente os registos vídeo e áudio de histórias de vida de atletas e testemunhos relevantes para a história do clube e a salvaguarda do riquíssimo património oral, imaterial. O valioso intangível que o Centro de Memórias do Museu Sporting se esforça em recolher, preservar digitalmente e tornar acessível, como fonte de conhecimento e estudo, mas também como um “Álbum de família “, que é sempre bom revisitar.
(Archivoz) O que nos pode dizer sobre a missão e a visão do Museu Sporting, mas também sobre os serviços que integra?
(Isabel Victor) As missões, como sabemos, não são estanques. Vão sendo discutidas e redefinidas de acordo com as necessidades e expectativas das comunidades em que se inserem. O importante é que estejam assimiladas e divulgadas, porque elas são o preâmbulo da nossa carta- compromisso.
O Museu Sporting, realça a centralidade da memória e adota, enfaticamente, como “missão: recolher e identificar os indicadores da memória do Sportinguismo no mundo, através de procedimentos museológicos de pesquisa, salvaguarda e comunicação, inserindo-os nos contextos interpretativos da História e Património(s) do Clube.”
(Archivoz) E sobre as coleções que integra, indicando, se possível, o número total aproximado de objetos existentes e a média de visitantes?
(Isabel Victor) As coleções são muito diversificadas, maioritariamente constituídas por largos milhares de troféus desportivos, mas também por insígnias e doações que constituem o que na gíria, a Memorabilia do Sporting Clube de Portugal – conjuntos de coisas e/ou acontecimentos memoráveis, que expressam a paixão e devoção ao ideal sportinguista.
Para além destes objetos, existem outros importantes documentos em suporte papel, fotografia, filmes. A estes juntam-se recentemente os registos vídeo e áudio de histórias de vida de atletas e testemunhos relevantes para a história do clube e a salvaguarda do riquíssimo património oral, imaterial. O valioso intangível que o Centro de Memórias do Museu Sporting se esforça em recolher, preservar digitalmente e tornar acessível, como fonte de conhecimento e estudo, mas também como um “Álbum de família “, que é sempre bom revisitar.
(Archivoz) Em 2019 o Museu Sporting foi distinguido com a Menção Honrosa, do Prémio Investigação, atribuído pela Associação Portuguesa de Museologia (APOM). O que representou para o Museu Sporting , e para a equipa que coordena, a atribuição desta prestigiada distinção?
(Isabel Victor) Ser distinguido entre pares, pela APOM – Associação Portuguesa de Museologia, como aconteceu em 2019 e mais recentemente neste ano, é motivo de orgulho e um bom indicador do reconhecimento publico do trabalho que a equipa do Museu Sporting tem levado a cabo.
A primeira distinção premiou a investigação inédita que esteve na base da exposição “Viagem do Sporting Clube de Portugal à China, em 1978, e a importância do desporto na diplomacia”. Visava não só reconstituir a fantástica experiência que foi, no tempo da presidência de João Rocha, reunir uma delegação, de cerca de meias centena de pessoas, de todos os quadrantes da sociedade, mas também, objetivamente recolher materiais, fontes escritas e orais, que testemunham a importância desta viagem num momento crucial que precedeu a reabertura das relações diplomáticas entre Portugal e a China.
Este ano o Museu foi premiado pela mediação que fez na comunidade sportinguista, junto do grupo “Os cinquentenários “, sócios com meio século ou mais de filiação no clube, que aceitaram suportar integralmente o restauro têxtil do estandarte da fundação do clube, reza a história, bordado pelas irmãs de José Alvalade. O gesto exemplar foi premiado na categoria mecenato.
Também neste ano, a APOM, decidiu atribuir-me o título “Museólogo(a) do Ano, 2021”. Elevada honra que partilho inexoravelmente e sem hesitação, com toda a equipa de profissionais do museu e com o SCP. É um orgulho receber tamanha distinção, neste ano tão difícil de pandemia, e na qualidade de diretora do Museu Sporting.
(Archivoz) Considerando o dinamismo que carateriza o Museu Sporting, quais os principais projetos e atividades que se encontram em curso e os que estão planeados para 2022? Também gostaria que nos falasse sobre a exposição permanente e as temporárias do Museu Sporting?
(Isabel Victor) Os projetos centram-se essencialmente em aproximar o museu da comunidade de sportinguistas, em Portugal e no Mundo. Trabalhar os valores do desporto, o humanismo e a cultura desportiva.
Uma programação diversificada que promove a inclusão e participação dos mais novos e dos mais velhos. Visitas em família à descoberta das modalidades. Recurso às expressões artísticas, ao teatro, à música, à dança para trabalhar com os mais novos em projetos de educação não formal, como o “equipa-te” que recriam ambientes e proporcionam vivencias estimulantes, momentos lúdicos, que proporcionam múltiplas aprendizagens.
Projetos intergeracionais (conversas com … visitas de autor) em que o museu é o pretexto para encontros e para falar de momentos marcantes e vidas exemplares.
Pesquisa permanente de conteúdos que alimentam temas da História e Património SCP, rubricas nas redes sociais do clube e nos seus meios de comunicação, nomeadamente o “Jornal Sporting” e a Sporting TV, onde o museu tem uma rubrica de três minutos, um separador, designado “O Museu Conta”, onde, a partir de um objeto (ancora de memória) se agarram testemunhos únicos e emocionantes da vida de atletas, sócios e dirigentes.
(Archivoz) O que difere os museus dos clubes desportivos dos demais?
(Isabel Victor) Os museus de clubes, falando especificamente daquele onde trabalho, o Museu Sporting é para os sportinguistas, um lugar de culto (e culto) de uma exigência extrema, também de grande apelo, no que toca à emoção.
Cada museu tem a sua especificidade, mas, genericamente, os museus de clubes são muito ritualizados, fortemente corporativos, museus onde tudo conta.
Museus-troféu, em si mesmos, com toda a carga, vibração e simbolismo, que o troféu contém. São, simultaneamente, momentâneos e perenes. Espera-se deles que estejam atualizados ao segundo, quando se proclama “Mais uma taça para o museu!” é como se já lá estivesse, mas ao mesmo tempo, espera-se que sejam uma espécie de Olimpo, o lugar sereno e abrigado do tempo, capaz de guardar para a eternidade a altura e grandeza das coisas. É nesta dualidade que também reside a sua beleza.
No que toca aos processos e procedimentos, à forma de fazer e realizar, programar, gerir, conservar, investigar, comunicar, são museus como os demais. Distinguem-se pelo compromisso e pela emoção. Recuso a ideia, ainda muito inculcada na nossa sociedade, de estratificar museus por categorias, em que os de desporto estão nas franjas da cultura cultivada (passo a redundância). O desporto é, inequivocamente, cultura, ponto! Tudo o que às pessoas diz respeito, diz-nos respeito, enquanto museólogos. Esta é a minha convicção. Aliás, parece-me importante sugerir ao ICOM internacional a criação de um comité específico de museus de desporto que inclua os museus de clubes. Terá, contudo, a meu ver, que ser uma entidade externa aos clubes e equidistante para conseguir esta agregação. O património desportivo teria, no meu entender, muito a ganhar, em conhecimento, visibilidade e salvaguarda, com a sua representação no ICOM. Os Clubes defrontam-se, são historicamente adversários e, respeitadas as regras, devem continuar a ser porque esse é o sal da competição desportiva, mas os museus dos clubes devem cooperar em prol da salvaguarda do património desportivo, mostrando abertamente e sem preconceitos o que os distingue, a sua identidade e até adversidade, recorrendo às ferramentas da Museologia , da História, Antropologia e demais ciências Sociais e do desporto, que contribuam para explicar o fenómeno e suscitar nas pessoas o respeito pela diversidade. Quanto mais estamos seguros de nós, da nossa identidade, melhor conseguimos dialogar com o outro (com os outros, no sentido antropológico do termo). Defendo as visitas técnicas entre museus de todas as naturezas, escalas e vocações, como meio de aprendizagem e reforço de uma rede colaborativa de profissionais, indispensável para o progresso dos museus e sua inserção na comunidade. Os museus não casas e coisas, são pensamento, edifico humano, além de tudo e sobretudo.
(Archivoz) Um tema incontornável, desde meados de março de 2019, é o novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19. Como diretora do Museu Sporting, quais foram os grandes desafios que enfrentou, ao nível da organização do trabalho interno, do atendimento ao público e da difusão da informação? Que estratégias foram desenvolvidas para mitigar o impacto deste contexto tão negativo?
(Isabel Victor) A grande adversidade transformou-se também numa grande oportunidade. As ferramentas do digital ganharam primazia. Foi uma descoberta, mas também um sobressalto, relativamente ao qual ainda é cedo para tecer considerações. Dava outro capítulo
(Archivoz) Por último, quais pensa serem os grandes desafios que os profissionais da museologia em Portugal têm de enfrentar, ao nível da organização, preservação e divulgação das respetivas coleções e acervos?
(Isabel Victor) Os grandes desafios que os profissionais da Museologia em Portugal têm de enfrentar, têm essencialmente a ver com preocupações sociais e capacidade, inteligência e vontade para orientar os museus para o que é fundamental: o bem-estar das pessoas, a sua felicidade e dignidade.
Os museus não podem ser estranhos às pessoas. Eles têm que ser lugares seguros, estimulantes e agregadores. Tem que ter tempo para as pessoas.
O tempo é um bem essencial para os museus.
Dai a importância da Museologia processual. Os processos são em si mesmos parte do museu. Quanto mais organizados e definidos estiverem mais tempo sobra para as pessoas e para o seu bem-estar. As novas tecnologias de comunicação e as ferramentas digitais serão, já são, importantes instrumentos que em crescente aceleração irão mudar, já estão a mudar, a paisagem museal. Os meios mudam e as mensagens também mudarão, mas nunca nos podemos esquecer que os museus são as pessoas. A obsolescência da tecnologia contrapõe-se à atualidade das pessoas. As pessoas envelhecem, mas nunca caem em desuso. É com as pessoas que temos que contar.
Neste desafio inclui-se, naturalmente a valorização dos profissionais dos museus e a sua estabilidade nas equipas. Um museu sem uma equipa estável, segura e, a todos os níveis bem preparada, não condições para cuidar seja do que for. A Museologia processual exige tempo, um tempo longo e em segurança. Cuidar exige cuidados.
Imagem cedida pelo entrevistado: Museu Sporting.
Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista