Em 20 de novembro de 2022, faleceu Anna Carboncini, diretora do Instituto Bardi/ Casa de Vidro. Dedicamos a Anna (in memorian) a publicação desta entrevista concedida por escrito em outubro de 2022.

(Archivoz) Primeiramente, gostaria de saber sobre o percurso profissional das senhoras e como chegaram ao Instituto Bardi.

(Eugênia Gorini) Em 1978 o MASP promoveu um curso de Museologia. Eu iniciei e ali conheci Anna Carboncini, que era assistente de Pietro Maria Bardi, diretor do museu. Como voluntária passei a ajudá-la e aprender na prática o cotidiano de um museu. Formada em jornalismo tinha prática com textos e Bardi escrevia os seus à mão, de modo que passei a transcrevê-los e ele gostou do meu trabalho. Com Bardi trabalhei até ele se afastar do MASP, por 14 anos – permaneci no museu até 2017. Inclusive acompanhei a criação do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, na Casa de Vidro.

(Archivoz) Podem traçar resumidamente o perfil do casal Bardi.

(EG) Ambos italianos. Ele nascido em La Spezia em 1900, atuou no jornalismo e no mercado de arte em Milão e Roma. Ela, romana nascida em 1914, se formou em arquitetura em sua cidade e trabalhou em Milão, em revistas, pois era época da segunda guerra. Em seu retorno a Roma trabalha no Studio d’Arte Palma, de Bardi e tem início o romance entre eles. Bardi se divorcia da primeira mulher e casa com Lina, já com intenção de vir para a América do Sul. Tinham espírito de vanguarda e visão de futuro. No Rio de Janeiro conheceram Assis Chateaubriand que queria criar um museu e teve início o MASP, um trabalho conjunto do casal. Ele adquiriu a coleção e os rumos da entidade e ela planejou os espaços e exposições. Ao longo da vida eles mantiveram uma convivência afetuosa e uma troca intelectual constante. O diálogo existia e era frequente. Bardi era um mentor para Lina; em muitos momentos ela o consultava, mesmo sobre arquitetura.

(Archivoz) A Casa de Vidro, onde está sediado o Instituto Bardi, o que preserva em termos do espólio do casal (objetos, mobiliário, documentos, livros etc)?

(EG) Ali está o remanescente da coleção de ambos: pinturas, esculturas, livros de arquitetura de Lina, objetos de arte popular. A biblioteca que trouxeram, inclusive com obras raras que Bardi sempre colecionou, foi doada por eles ao MASP em 1977, nos 30 anos do museu.

(Archivoz) Sendo a Archivoz uma revista de temática sobre arquivos e coleções, gostaria de saber a respeito do material documental existente sobre o casal Bardi. Podem traçar um perfil geral da documentação?

(EG) A Casa conserva todos os desenhos de Lina – mais de 7.000 – e seu arquivo documental e fotográfico, bem como o de Pietro Maria Bardi. É um arquivo importante para os pesquisadores de arquitetura e arte. Chegam estudiosos do Brasil e do exterior. Como Bardi criou e dirigiu o MASP, muito de sua correspondência pessoal após 1947 está no Museu. Porém, muita documentação está na Casa. Seu arquivo pessoal de 1917 a 1946, ele doou para a Itália e está na Biblioteca Trivulziana, em Milão.

(Archivoz) Como se encontrava a documentação do casal? Existe uma quantidade mais expressiva de documentos do Pietro ou da Lina? Existe alguma distinção entre os documentos de personalidade física (pessoal) e de personalidade jurídica (escritório da Lina ou escritório de Pietro)? Havia alguma ordem original dada pelo casal? Caso não tenha existido essa distinção, como atualmente vocês tratam essa questão? Existem outros institutos que possuem parcelas dos arquivos do casal?

(Anna Carboncini) Os assistentes de Lina tinham organizado os desenhos e documentos (em parte) e, a princípio, não havia preocupação com a conservação.  Então, foi necessário fazer, posteriormente, a catalogação de tudo e realizar a guarda em locais adequados. O que prevalece são os desenhos de Lina, pela quantidade expressiva. Nos documentos escritos a quantidade de Bardi é maior. Não existe distinção entre os documentos de ambos, apenas a identificação do que é de autoria dela ou dele. Eles nunca deram uma ordem específica, porém guardaram tudo que puderam – até pequenos papéis. O Museu de Arte de São Paulo conserva uma parte significativa do arquivo de Pietro Maria Bardi, que foi fundador e diretor do Museu desde 1947. Bardi teve uma atividade intensa na Itália, onde nasceu, e, como já dito por Eugênia, doou seu arquivo de 1917 a 1946 para seu país – está conservado na Biblioteca Trivulziana, situada no Castello Sforzesco, em Milão.

(EG) Anna sabe muito sobre isso, pois acompanhou o processo de perto. Em parte, isso está respondido acima. Lina trabalhava em casa e mesmo fora de São Paulo manteve consigo a maior parte de desenhos. Ela guardou muito bem sua produção e há desenhos até mesmo em pequenos papéis.

(AC e EG) A arquivista que trabalhou com os documentos de Pietro Maria Bardi, Daisy Almeida, passou algumas informações. Segundo a arquivista, parte do trabalho foi feito apenas no arquivo de Lina Bo Bardi. “O Instituto Bardi tem 3 fundos: fundo Lina (concluído), fundo Bardi (faltando uns 10 por cento do que está no Instituto) e o fundo Instituto Lina Bardi e Pietro Maria, ainda não iniciado. Este se refere à documentação do Instituto em si, desde que foi criado e fica guardado em caixas de arquivo. As descrições envolvem atividades desenvolvidas por cada titular, eventos de que cada um participou, bem como seus interesses por inúmeras áreas de conhecimento. Uma vez concluídas ambas as descrições, foi elaborado um inventário cronológico de cada um. Em nenhum dos fundos foi mantida a ordem original. No caso de Bardi, por exemplo, toda a documentação foi manipulada e preservada por funcionários ao longo do tempo. Para poder comparar a quantidade de documentos da Lina com os do Bardi é preciso verificar o banco de dados, porque não tenho a quantidade de quando foi feita a primeira parte. Sei apenas dizer que nesta segunda fase chegamos a 3661. Ainda tem os 7000 desenhos de Lina Bardi (quantidade certa eu não tenho, não participei). Os do Bardi totalizaram 12.004 documentos, fora os que ficaram por fazer, uns 10 por cento, imagino” (palavras de Daisy Elias de Almeida, Arquivista do Instituto Bardi).

(Archivoz) Em certa visita que fiz à Casa, comentaram sobre a correspondência da Lina Bo Bardi e os seus aspectos quase literários, de tão bem escritas. Gostariam de comentar um pouco mais a respeito ou destacar outra série de documentos que acham interessante e particular, como por exemplo fotografias ou material audiovisual.

(AC) Ambos eram muito cultos e escreviam bem; os textos são claros e elegantes. Há mais cartas de Lina para Bardi, que era fascinado por arquivos e guardava tudo. As cartas dele para ela não são muitas, porém ela se refere a elas nas suas.

(Archivoz) Existem livros biográficos no mercado a respeito da Lina Bo Bardi. Podem citar algum que tenha usado o acervo arquivístico? Até onde essas obras dialogam e ou complementam os personagens Lina e Pietro?

(AC)  São inúmeros os pesquisadores que frequentam o Instituto Bardi para pesquisa. Eles vêm de outros países também e sobretudo de universidades. Sobre as biografias: Zeuler Lima pesquisou bastante no Instituto para sua recente obra sobre Lina Bo Bardi. O outro biógrafo, Francesco Perrotta Bosch, contatou o Instituto, porém foi num momento interno de transição e logo depois veio a pandemia, o que foi uma pena. Ele recorreu a muitos arquivos, até mesmo na Itália, e a outras fontes sobre Lina. As publicações mostram bem as personalidades de ambos.

(EG) Bardi teve sua biografia publicada pelo arquiteto e professor Francesco Tentori, pela editora Mazzotta, em Milão em 1988 e traduzida no Brasil em 2000, pelo próprio Instituto Bardi. Ele ainda vivia e deu vários depoimentos nas viagens do autor a São Paulo e na intensa correspondência que trocaram. O livro narra a intensa trajetória italiana de Bardi, tanto quanto a brasileira e no MASP. As biografias recentes de Lina mostram também a figura do marido, mesmo que o foco seja ela. Havia a convivência e o diálogo constante entre ambos.

(Archivoz) Sobre a Casa de Vidro, os documentos de arquivo ajudaram no planejamento do atual cenário expositivo e ou nas ações educativas? Como isso se dá isso?

(EG e AC) O arquivo é sempre um suporte importante para as atividades da Casa, quando abrangem o casal ou um dos dois.

Imagem de cabeçalho: Casa de Vidro (São Paulo, 1951). Autor Peter Scheier. Disponível em https://portal.institutobardi.org/a-casa-de-vidro/a-casa-dos-bardi/#gallery-29.

Entrevistados:

Anna Carboncini e Eugênia Gorini Esmeraldo

Anna Carboncini e Eugênia Gorini Esmeraldo

Anna Carboncini

Italiana, formada em línguas e literaturas estrangeiras pela Universidade L. Bocconi de Milão, Anna Carboncini se transferiu para São Paulo em 1974. Começou a trabalhar no MASP, Museu de Arte de São Paulo em 1975, trabalhando diretamente com o diretor Pietro Maria Bardi. Assim adquiriu uma base sólida em museologia e arquivos. Atuou em pesquisas, exposições e, depois, no acervo do Museu, organizando seu arquivo histórico, de 1947 a 1982, que marcou os 35 anos do MASP. Ali ficou até 1985. Também colaborou com a Pinacoteca do Estado e com a Bienal de São Paulo.

A partir de 1990 organiza a significativa “Coleção Pirelli/MASP de Fotografias” que teve 16 edições e divulgou inúmeros fotógrafos brasileiros; este tema passou a ser seu foco principal, como o livro “Claudia Andujar: Yanomami” na Bienal de Curitiba, em 1998. Atuou também na exposição “Brasil 500 anos” em 2000. Ingressou no Instituto Bardi em 2003, tanto na diretoria, de 2006 até 2008, e ativamente como conselheira entre 2008 e 2015. Atuou sempre como responsável pelo acervo e organizou os arquivos de Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi.

 

Eugênia Gorini Esmeraldo

Com formação em jornalismo e Museologia, é doutora em História da Arte pela Unicamp, trabalhou por muitos anos no MASP de 1979 a 2017. Foi assistente de Pietro Maria Bardi, fundador da instituição e diretor até 1990. Realizou várias curadorias no MASP, sempre abordando a coleção do museu. Além disso, como coordenadora de Intercâmbio, organizou os empréstimos de obras para museus estrangeiros e brasileiros.  Desde a criação do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi está presente na entidade e participa do Conselho. Traduziu o livro/biografia de Pietro Maria Bardi, de autoria de Francesco Tentori e fez parte da organização do arquivo de Bardi.

Entrevistador:

Simone Silva Fernandes

Simone Silva Fernandes

Editor de conteúdo em português

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), possui graduação em Faculdade de Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atualmente é técnico documentalista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Tem experiência nas áreas de História e das Ciências da Informação, com ênfase em História Contemporânea, em História do Brasil e em Arquivologia. Atua em Centros de Documentação e Memória, sobretudo no tratamento da informação e na difusão cultural de acervos

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