AV: Como despertou o seu interesse para a área dos arquivos e património cultural?
CN: A minha formação académica em História implicou a frequência assídua dos arquivos. Ali, junto das fontes primárias, sentia-me mais próxima dos contextos históricos que estudava. Sempre me entusiasmou o facto dos arquivos serem uma fonte inesgotável de informação e como o conhecimento do passado altera a minha perceção do presente e visão do futuro. O conhecimento das raízes de um povo ou de uma região e a sua relevância na construção da identidade coletiva sempre me cativou.
AV: E o projeto CulturAge como começou?
CN: Desde a faculdade que advogava as potencialidades da nossa história para o turismo cultural. Hoje não temos qualquer dúvida sobre importância estratégica do património cultural para o desenvolvimento económico, social e cultural do país. Este projeto foi crescendo gradualmente à medida que fui tendo as primeiras experiências profissionais e foram surgindo convites para trabalhar em projetos diferentes. Sempre gostei de desafios e ambicionei ter experiências profissionais diversificadas na área. Agradava-me a possibilidade de aprofundar diversas épocas históricas com uma abordagem pluridisciplinar do património. Ambicionava trabalhar em projetos onde pudesse desempenhar tarefas simultaneamente em áreas como a investigação histórica, a educação, a museologia, a arquivística e o turismo. Por outro lado, o interesse pessoal nas áreas da gestão, marketing e empreendedorismo permitiu ligar os pontos (“connecting the dots”) e então formalizar a criação da CulturAge em 2015 para trabalhar em todos os domínios do património, de forma sistémica e holística. Cada projeto é único e diferente, pode abordar épocas e áreas diversificadas e em cada desafio conhecemos novas realidades e ambientes. Através dos nossos projetos estamos a contribuir para a valorização da história e património, garantindo não só a sua salvaguarda como a sua fruição, ao mesmo tempo que capacitamos as instituições e os territórios para uma nova era – a idade da cultura ou CulturAge.
AV: É desafiante criar uma equipa multidisciplinar em museologia, arquivística, biblioteconomia e ciência da informação?
CN: A maioria dos nossos clientes possuem diferentes tipos de património e como tal, os projetos requerem equipas interdisciplinares. Não podemos estar limitados a uma área de conhecimento, por isso, é fundamental envolver pessoas na equipa com experiência em áreas de especialidade diferente. Em qualquer equipa de trabalho existem sempre os seus desafios, mas quando existe profissionalismo, dedicação e paixão, tudo se ultrapassa.
AV: Denota-se, nos seus projetos, que tem trabalhado em alguns arquivos privados. Há sensibilidade para a salvaguarda deste património? Acredita que seja um mercado em expansão?
CN: Nos arquivos privados, sejam institucionais ou familiares, a noção de património, herança e a afetividade são mais evidentes e possuem um peso significativo na hora de decidir o que fazer com os “papéis e fotografias”. É um mercado com especificidades próprias no qual se tem verificado uma maior sensibilização para o valor do património documental, quer pelos proprietários quer por parte das pessoas em geral. Tem também registado uma maior procura por parte dos investigadores e da historiografia. Do ponto de vista do investimento na organização dos arquivos privados, julgo que será precoce assumir que se encontra expansão. Seria excelente para todos que assim fosse.
É uma área de trabalho extremamente fascinante porque temos o privilégio de nos abrirem a porta de um mundo restrito, confiando em nós os seus tesouros. É um ambiente onde podemos ser mais criativos e onde valorizam ainda mais o que fazemos.
AV: Qual o projeto ou projetos mais desafiantes que teve até ao momento?
CN: Todos os projetos são desafiantes e têm sido muito gratificantes.
Do ponto de vista da abrangência, do tipo de património, do volume e risco de perda, destaco os projetos que temos desenvolvido no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais desde 2017 com o apoio da Sasakawa Health Foundation (Japão) que têm possibilitado a salvaguarda do património do antigo Hospital Colónia Rovisco Pais, a aldeia terapêutica, também conhecida por Leprosaria Nacional (1947-1996).
Restringindo-me aos projetos dedicados maioritariamente à área da arquivística tenho que referir o arquivo familiar Quevedo Pessanha, o arquivo da Ordem dos Farmacêuticos e os arquivos da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. O arquivo familiar teve um papel preponderante na minha paixão pela arquivística, por ter sido o primeiro (2008) neste domínio e por ter sido desenvolvido em dois solares de Trancoso e Viseu. Na Ordem dos Farmacêuticos pela importância do arquivo e da memória coletiva dos profissionais que representa e pelo percurso percorrido até ao momento em que garantimos a sua divulgação no Portal Português de Arquivos e inauguração em 2012. A Escola Superior de Enfermagem de Coimbra foi o maior e mais longo projeto (2018-2020) no qual organizámos os arquivos histórico, intermédio e corrente e os arquivos fotográficos de cinco escolas de enfermagem de Coimbra, quatro antigas (1881-2005) e a atual, criada em 2005, depois da curadoria da exposição “135 Anos de Ensino de enfermagem em Coimbra”.
AV: Vivemos numa época de mudança de paradigma no trabalho arquivístico. Como vê o futuro dos profissionais da área, uma vez que os novos profissionais estão mais vocacionados para as novas tecnologias e não tanto para tratamento de arquivos históricos?
CN: Tenho expetativa que a progressiva aposta nas novas tecnologias no domínio da arquivística contribua para melhorar as estratégias de comunicação do património arquivístico, captando novos públicos.
Acredito que o manancial de informação inédita existente nos arquivos históricos é muito importante para a produção de conhecimento e de novos conteúdos, e que estes são indispensáveis na comunicação e valorização do património. Dessa forma, podemos igualmente qualificar e diversificar a oferta, garantir um turismo cultural composto por experiências de qualidade, capazes de promover a sustentabilidade do património, potenciando assim o valor económico social inerente a este recurso endógeno. Julgo que os arquivistas, e os arquivos históricos têm um papel a desempenhar neste processo, pois o seu trabalho é essencial para a disponibilização da matéria prima – as fontes primárias que ajudam a conhecer melhor a nossa história e as nossas tradições.
Por último, tenho esperança que nesta mudança de paradigma os profissionais de arquivo possam ter um papel mais ativo na implementação de políticas de gestão documental e de preservação digital nas instituições. A sua participação e conhecimentos são indispensáveis para que a desmaterialização progressiva seja convenientemente realizada, acarrete menores riscos de perda, e em última análise, garanta a existência e acessibilidade de arquivos históricos no futuro. Pois, como defende Abby Rumsey “para gerir a informação inventámos as bibliotecas, os arquivos e os museus: repositórios de memória que nos contam de onde vimos e definem o nosso futuro”.
Imagem cedida por Culturage
Cristina Nogueira
Directora de Culturage
Formação:
(2002) Licenciatura em História, ramo de Formação Educacional – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;
(2003) CAP Formador – IEFP
(2014) Curso de Especialização em Ciência da Informação – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;
(2022) Programa Avançado Gestão do Património Cultural – Católica Porto Business School
Atividades profissionais:
Áreas do ensino básico, secundário e profissional, museus e centros de documentação.
Entre 2002-2003 participação no Inventário Nacional de Património Móvel promovido pelo Instituto Português de Museus, tendo a seu cargo a investigação e inventariação de diversas coleções do Museu Nacional Grão Vasco no MatrizNet.
Entre 2005 e 2007 acompanhou o início da promoção turística da vila histórica de Belmonte com a redação e publicação do roteiro e da monografia do concelho de Belmonte.
Entre 2006 e 2015, na Fundação Bissaya Barreto promoveu o estudo e divulgação da história do seu patrono e da obra social que criou. Foi responsável pela organização do arquivo pessoal do Prof. Bissaya Barreto e da Fundação com seu nome e implementação do serviço do Centro de Documentação Bissaya Barreto (2006-2015). Entre 2008 e 2015 foi responsável pelo projeto designado Núcleo Documental Bissaya Barreto, resultante da parceria entre a Fundação Bissaya Barreto e o Arquivo da Universidade de Coimbra para o estudo dos Arquivos da Junta de Província da Beira Litoral diretamente relacionados com a atividade médico-social do Prof. Bissaya Barreto. No âmbito destes projetos redigiu diversos textos para catálogos e artigos científicos, relacionados com a obra médico social da região centro, dinamizada por Bissaya Barreto (maternidades, sanatórios, hospitais, psiquiatrias, leprosarias).
Além de estudos de caráter histórico com base em arquivos, tem-se dedicado a estudos de natureza arquivística, área onde realizou o curso de especialização, e no âmbito do qual foi autora do estudo “A Imprensa da Universidade de Coimbra: estrutura orgânico funcional e análise do contexto de produção e fluxo documental e informacional durante a administração do Doutor Joaquim de Carvalho (19211934)” publicado no Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra de 2014.