(Archivoz) Fale-nos um pouco do seu percurso profissional até chegar a Coordenador do Arquivo Municipal de Leiria, cargo que ocupa desde 2014.
(Luís Miguel Narciso) O gosto pela História de Portugal vem dos tempos da escola, ainda hoje recordo as palavras de um professor, “…se não for para História penduro-o na varanda pelas orelhas…”, mas o que é certo… não segui o conselho.
Do gosto ao interesse pela forma como divulgamos/comunicamos o património foi um saltinho. A minha passagem pelo Museu Escolar de Marrazes (Leiria), despertou “o querer saber mais” sobre os documentos e a história que revelam.
Nessa altura, a Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD) tinha lançado o Curso Técnico Profissional de Arquivo, no qual me inscrevi. Após a conclusão do curso, ingresso nos quadros do Município de Leiria, no ano de 2005, na carreira de técnico profissional de arquivo, exercendo funções do Serviço de Arquivo Administrativo.
Em 2013, concluo o mestrado em Ciências de Informação e Documentação, variante de Arquivo, um ano depois, surgiu a necessidade de reorganizar os serviços de Arquivo Administrativo e Arquivo Histórico, sendo agrupados no Serviço de Arquivo Municipal de Leiria.
(Archivoz) Como referido, é Coordenador do Arquivo Municipal de Leiria, cargo que ocupa desde 2014, cargo que acumula com outras funções. O que nos pode dizer sobre as mesmas e que balanço faz de oito anos como coordenador deste serviço de informação de arquivo?
(Luís Miguel Narciso) No contexto associativo, a minha atuação tem sido algo diversificada. Faço parte de uma excelente equipa de técnicos, dos vários serviços de informação, que representam a delegação centro da BAD, tem permitido conhecer a realidade e a preocupação da maioria dos serviços de informação da região centro.
Pertenço também ao Grupo de Trabalho dos Arquivos Municipais, da BAD, estrutura constituída, na sua maioria, por admiráveis técnicos, de norte a sul do país, que permite debater, refletir e promover o conhecimento, bem como a implementação dos princípios e das boas práticas de gestão de documentos.
No âmbito do património, ainda pertenço faço parte de uma brilhante equipa na defesa da salvaguarda e valorização do património da estremadura, como Vice-Presidente do Centro do Património da Alta Estremadura (CEPAE).
Em relação às minhas funções nos últimos 10 anos, assinalo a participação em equipas multidisciplinares, constituídas por colaboradores com conhecimentos técnicos nas variadíssimas áreas de atuação do Município, nomeadamente na participação em grupos de trabalho, ao nível da modernização administrativa, da proteção de dados (pessoais ou não), do acesso à informação, sem esquecer a divulgação do património em especial na criação de alguns roteiros literários.
Cada vez mais, os técnicos arquivo são chamados, nas Organizações, a participar em equipas multidisciplinares, existem alguns casos de sucesso, a isto deve-se o conhecimento técnico que adquiriram, quer ao nível teórico e prático. A grande vantagem é o conhecimento que têm sobre a informação interna e a evolução dos procedimentos administrativos e ainda possuem uma visão da Organização como um todo. Este know-how contribui decisivamente para uma melhor atuação destes grupos multidisciplinares, é esta a nossa grande vantagem e a oportunidade na acumulação de funções.
(Archivoz) Em Maio de 2013 defendeu a sua dissertação de mestrado, subordinada ao título O tratamento e divulgação do fundo já Junta de Turismo de Monte Real, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Quais foram as principais conclusões a que chegou?
(Luís Miguel Narciso) Por um lado, foi possível aferir, através da análise da documentação, o impacto que a Junta de Turismo teve no seio da comunidade local, em torno das Termas. Grande parte da dinâmica social ocorria num determinado período, na sua grande maioria nas épocas de primavera e verão. Foi descrita informação sobre o envolvimento da sociedade, na defesa e promoção deste recurso natural, por exemplo, ao nível do acolhimento dos visitantes. Outros dados interessantes foram a elevada quantidade de hotéis, residenciais, pensões e casas de aluguer.
Por outro lado, a grande reflexão assenta no escasso tratamento, conservação e divulgação desta documentação, a nível nacional, uma vez que o termalismo toda uma rede económica, social e cultural. A “exploração” desta documentação poderá complementar estudos direcionados para várias áreas, como a história local, social, económica e, sobretudo, a área da saúde e muitas outras.
(Archivoz) O Arquivo Municipal de Leiria tem à sua responsabilidade um vasto e importante património arquivístico, nos mais variados tipos de suporte. Qual a dimensão do mesmo, que fundos e coleções gostaria de destacar e quais são os instrumentos de acesso à informação existentes, de forma a permitir a sua pesquisa e acesso?
(Luís Miguel Narciso) Regularmente o Arquivo Municipal de Leiria realiza um diagnóstico interno sobre a documentação existente nos vários serviços do Município, onde recolhemos indicadores sobre os respetivos suportes e dimensões, espaços de depósito, assim como dados estatísticos do serviço de arquivo. No final, apresentamos algumas propostas para melhorar a gestão de informação.
No último relatório de 2017, foram identificados, aproximadamente, cerca de 15.000 metros lineares de documentação, em suporte papel.
Para além do fundo do Município de Leiria destaco os fundos da Liga de Amigos do Castelo de Leiria, Assembleia Cultural de Leiria, Administração do Concelho de Leiria e Sociedade para o Desenvolvimento do programa Polis em Leiria, e os fundos particulares de Fernando Amaro e Adelino Caravela.
O catálogo online referente ao fundo do Município de Leiria está em permanente atualização, disponibilizando-se ao utilizador um conjunto de serviços, nomeadamente, a pesquisa, pedidos de reprodução, pedidos de consulta online e agendamento de consulta presencial. Ou seja, é possível a consulta e a interação com o arquivo municipal, sem ser necessária a deslocação às instalações.
(Archivoz) A comunicação da informação é crucial em qualquer serviço de informação, para mais considerando o contexto de pandemia que ainda nos encontramos a viver. Pode dizer-nos o que tem sido feito nesse sentido no Arquivo Municipal de Leiria, desde que é coordenador do mesmo?
(Luís Miguel Narciso) Em 2014 foi delineado um plano de ação para o Arquivo Municipal de Leiria, assente em objetivos a curto, médio e longo prazo. Este plano foi desenvolvido por uma equipa multidisciplinar que onde esteve envolvida a área jurídica, informática e informação. Na primeira fase (curto prazo), o foco incidiu no tratamento da documentação, em especial a recolha de dados e descrição da informação arquivística, bem como a possibilidade de migração da informação existente, em várias bases de dados. Numa segunda fase (médio prazo), o objetivo prendeu-se a reflexão sobre um plano de preservação digital tendo por base a transferência de suporte, o armazenamento de objetos digitais, o acesso à informação. Por último, a última fase (longo prazo) abarcou a divulgação da informação e ações de valorização do património arquivístico.
Este plano identifica um conjunto de necessidade e os respetivos objetivos a atingir, nomeadamente, o reforço de recursos humanos, aquisição de software (2015) e a aquisição de equipamento de digitalização (2019).
Com a pandemia foi necessário antecipar os objetivos a longo prazo, pensados para 2022, nomeadamente no que diz respeito ao acesso à informação. O principal impacto da pandemia no Arquivo Municipal de Leiria foi, efetivamente, o acesso à informação, em particular, a documentação em suporte papel, quer pelos serviços internos, quer pelos utilizadores externos. Tendo em conta este contexto modificámos algumas medidas e antecipámos a possibilidade de acesso online à informação, para os utilizadores externos, mediante níveis de permissões.
(Archivoz) E no que respeita à abertura do Arquivo Municipal de Leiria à comunidade, quais as atividades desenvolvidas de forma a alcançar esse objetivo?
(Luís Miguel Narciso) O Arquivo Municipal de Leiria tem participado em alguns eventos, promovidos pelo Município de Leiria e pela iniciativa particular. Sabemos, contudo, que não é suficiente, por isso esta medida está prevista no plano de ação para longo prazo. No entanto, já iniciámos alguns contactos para desenvolver um conjunto de atividades, a realizar no ano de 2023.
(Archivoz) Considerando o trabalho desenvolvido no Arquivo Municipal de Leiria, quais os principais projetos que se encontram a decorrer e os que estão planeados no decurso deste ano?
(Luís Miguel Narciso) Ao nível do tratamento e descrição de informação estamos focalizados na documentação de inscrição de velocípedes, registo de matrículas de veículos e nas fotografias, em suporte digital.
Ao nível da interoperabilidade estamos a preparar dois projetos de integração. Um projeto prevê a intervenção sobre um sistema de gestão documental descontinuado, e outro, a integração com o sistema de gestão documental, em uso, no Município de Leiria.
(Archivoz) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 provocaram alterações profundas nos serviços de informação em Portugal, desde a organização do trabalho interno, ao atendimento aos utilizadores e à comunicação da informação. Como responsável pelo Arquivo Municipal de Leiria, o que nos pode dizer da sua experiência neste período tão singular e difícil, que infelizmente ainda não terminou. Que desafios e oportunidades gostaria de destacar, desde meados de março de 2020 até ao presente?
(Luís Miguel Narciso) No Arquivo Municipal de Leiria o contexto pandémico coincidiu com a implementação do serviço de digitalização, tendo funcionado como um teste para avaliar o desempenho do serviço.
Foi um período desafiante pois tivemos de dar resposta aos pedidos de consulta de documentos, quer pelos serviços internos, quer pelos cidadãos, privilegiando a consulta online. Para tal, alargámos o horário de serviço e contámos com a excelente interajuda dos colaboradores do Arquivo Municipal de Leiria, tenho de dar o meu reconhecimento, pois todos comprometeram-se com o serviço.
A maior oportunidade que gostaria de destacar foi o elevado reconhecimento e visibilidade do Arquivo Municipal pelo cidadão, que tinha acesso à informação, comodamente, no seu local de trabalho “em casa”, com as devidas permissões. Paralelamente, era produzido relatório mensal, com a quantidade de consultas online e de processo desmaterializados.
(Archivoz) Tendo em conta o seu percurso e experiência nesta área, como é que vê o futuro dos arquivos municipais em Portugal e quais é que pensa que são os grandes riscos, desafios e oportunidades para os seus profissionais?
(Luís Miguel Narciso) Sou uma pessoa muito otimista. Vejo o futuro dos arquivos municipais com mais competências, na área da gestão da informação, com uma atuação mais afirmativa e participativa, no dia a dia da Organização e, consequentemente, maior reconhecimento por parte da sociedade, mas não podemos descurar que é necessário um maior esforço dos técnicos na cooperação interna e na interajuda com os demais profissionais da área da informação.
Relevo uma preocupação sobre dois “grandes mundos”, o da salvaguarda da informação produzida e recebida por outras entidades, nomeadamente juntas de freguesias, associações e outras instituições marcantes para a nossa história local. O outro mundo, o da gestão da informação, que evoluiu a uma velocidade enorme, estou a referir-me a quantidade de informação existente nas várias aplicações direcionadas para as áreas de atuação das autarquias locais, pois esta informação também tem valor probatório e é património arquivístico.
O maior risco será garantir a salvaguarda da informação em ambiente digital, esta vai ficando retida em sistemas de informação, correndo o sério risco das infraestruturas tecnológicas se tornarem obsoletas, inviabilizando o acesso à informação.
A grande questão que coloco é a seguinte: a informação registada em ambiente digital, nos primitivos sistemas de informação existentes nas organizações está ainda acessível? E o cidadão comum tem acesso a ela? Com a massificação de sistemas de informação, a metainformação e todo o conteúdo existente nestas aplicações resultou e resulta num conjunto acumulado de informação digital, ou seja, os nossos depósitos passam a chamar-se servidores, as dimensões passam a ser bytes… Esta é a realidade atual e temos de torná-la numa oportunidade. Não vejo outros profissionais a colocarem as mãos nas “massas os documentos digitais acumulados.”
Deixo a minha reflexão.
Quando realizo uma pesquisa nos sistemas de informação, fico sempre com a ideia de que o resultado não é satisfatório… Como estará a nossa pegada digital daqui a 10, 20, 50 anos? Com a quantidade de infraestruturas tecnológicas e o volume de informação acho melhor centrar a nossa atuação mais para a avaliação da informação em ambiente digital. É urgente capacitar e reforçar os técnicos para este grande mundo da avaliação da informação em ambiente digital, começa a ficar difícil “fatiar o elefante”.
Imagem cedida pelo entrevistado: Livro de Tombo – 1815
Entrevistado:

Luís Miguel Narciso
Coordenador do Arquivo Municipal de Leiria
Natural de Leiria, licenciado em Gestão de Recursos Humanos (ISLA Leiria) e mestrado em Ciências da Informação e Documentação, variante Arquivo (Universidade Nova – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas).
Técnico superior de arquivo na Câmara Municipal de Leiria, coordenador do Arquivo Municipal de Leiria desde 2014.
Acumula as funções de:
– Encarregado de Proteção de Dados da Câmara Municipal de Leiria desde 2018;
– Vogal efetivo da Comissão Paritária – SIADAP 3 desde 2010;
– Participação na investigação, preparação e realização das Rotas Literárias de Leiria de 2012-2015;
Associativismo:
– Responsável pela delegação centro da BAD (Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação)
– Vice-Presidente da Direção do Centro de Património da Estremadura (CEPAE)
Publicações:
– Artigos de opinião no Jornal de Leiria, através do Centro de Património da Estremadura (CEPAE)
Entrevistador:

Paulo Batista
Editor de contenidos en Portugues
Doutor em Documentación (Universidad de Alcalá de Henares – UAH), Mestre em Ciências da Informação e da Documentação (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa – FSCH-UNL), Máster em Documentación (UAH) e Diploma de Estudios Avanzados de Doctorado em Bibliografia y Documentación Retrospectiva en Humanidades (UAH), Pós-graduado em Direito da Sociedade da Informação (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e em Ciências da Informação e da Documentação – Biblioteconomia e Arquivística (FCSH-UNL), Especialização em Boas Práticas em Gestão Patrimonial e em Ciências da Informação e da Documentação – Arquivística (FCSH-UNL), Licenciado em História (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
Atualmente desempenha funções de Técnico Superior no Arquivo Municipal de Lisboa, de Professor Convidado no Mestrado Arquitetura e Cultura Visual em Lisboa (Unidades Curriculares “Arquivos de Arquitetura: do documento à difusão” e “Fontes de arquitetura e produção de conhecimento”), do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, de Professor Convidado no Curso de Pós-Graduação de Museologia (Unidade Curricular “Arquivos e Museologia”), da Universidade Autónoma de Lisboa, e de Investigador Integrado do CIDEHUS.UÉ – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, para além de formador na BAD – Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação, em Arquivos de Arquitetura, e da Câmara Municipal de Lisboa, em Introdução às Técnicas Documentais. É Secretário da Comissão Executiva da Secção de Arquivos de Arquitetura do Conselho Internacional de Arquivos.
Foi docente no Mestrado de Ciências da Informação e da Documentação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, técnico superior no Instituto Português do Património Cultural, no Instituto Português do Património Arquitetónico/Palácio Nacional de Queluz e no Instituto de Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, e investigador no Instituto de Investigação Científica tropical – Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga.
É autor de diversos livros e publicações em revistas da especialidade portuguesas e estrangeiras, em livros de coordenação diversa e artigos científicos apresentados em congressos nacionais e internacionais.