“Para se desenvolver a análise histórica nos campos não apenas do religioso, mas do social, da cultura e da política e da economia, em relação aos quais estes arquivos (Arquivos Religiosos) constituem fonte fundamental:” Entrevista a Rita Mendonça Leite, professora de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

(Archivoz) A Sociedade Bíblica é um tema que, a maior parte de nós, desconhece. Em que consiste essa Sociedade, quais os seus objetivos?

Rita Mendonça Leite A Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (SBBE) foi fundada em 1804 em Londres com o objetivo exclusivo de distribuição dos textos bíblicos, assumindo desde a sua inauguração uma dupla vertente – doméstica e internacional – assente em três aspetos fundamentais: o aprovisionamento das Escrituras na sua tipologia diversa (Bíblia completa, Novo Testamento e Porções, isto é, publicação em separata de livros específicos da Bíblia); a distribuição «universal» dos mesmos, procurando dinamizar edições no máximo número de línguas e dialetos; e a superintendência  daquela circulação, em grande medida garantida através da correspondência com indivíduos e sociedades um pouco por todo o mundo e da presença de agentes oficiais nos cinco continentes. Esse plano de difusão bíblica a um nível global rapidamente chegou a Portugal, onde, desde 1808, circularam os textos bíblicos editados pela instituição. Começando por se estruturar numa rede ampla de correspondentes e colaboradores, aquele plano de ação seria plenamente consolidado na 2ª metade do século XIX com a criação de uma Agência oficial em Lisboa no ano de 1864, com a dinamização de um sistema de colportagem, implementado a partir daquela década de 60 e com a abertura dos chamados «Depósitos bíblicos», estabelecimentos de venda permanente daqueles volumes (inaugurados ao longo das décadas de 70 e 80). Depois de um longo percurso ao longo daquele século XIX e do século XX, a agência da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira em Lisboa acabou, em 1989, por se autonomizar, constituindo-se como associação nacional de carácter interconfessional e assumindo uma nova designação – Sociedade Bíblica de Portugal (SBP). Desenvolveu-se a partir daí como membro integrante das Sociedades Bíblicas Unidas e do «Grupo Lusófono» da mesma instituição, constituído em 1998.

(Archivoz)  Num primeiro momento, pode descrever-nos como foi o acesso a esse arquivo?

RML Estando a desenvolver, no âmbito do meu projeto de doutoramento, uma pesquisa sobre o percurso e papel da Sociedade Bíblica em Portugal, a minha pesquisa conduziu-me até aos Bible Society Archives, depositados na Cambridge University Library desde 1984/5. Encontrei toda a informação sobre a localização, acesso e conteúdos do Arquivo numa primeira pesquisa online. A partir da consulta do site da Universidade de Cambridge, e mais especificamente da Cambridge University Library, pude ter acesso ao catálogo Janus, onde consultei a descrição do Arquivo e pude elencar atempadamente toda a documentação que planeava trabalhar – e, depois, efetivamente, consultei – na visita presencial ao Arquivo. Entrando em contacto com os serviços, no dia em que cheguei a Cambridge foi-me fornecido um cartão de identificação, tive acesso imediato à Biblioteca e comecei nessa mesma manhã a ler documentação.

(Archivoz)  Que tipo de documentação podemos encontrar neste tipo de arquivos?

RML Nos Arquivos da SBBE, encontrei documentação manuscrita e impressa, inédita e muito rica, designadamente: os Agent Books dos superintendentes da SBBE a operar em Portugal desde 1809; as coletâneas e cadernos de notas da SBBE sobre a ação da Sociedade em Portugal durante o século XIX e primeira metade do século XX; a correspondência do Comité, Subcomités e Secretariado da SBBE com os diferentes colaboradores que, ao longo daquele período, com diferentes funções e em espaços diversos (Portugal metropolitano, territórios ultramarinos e espaços de influência portuguesa) colaboraram na consolidação da Sociedade Bíblica em Portugal e na dinamização da circulação da Bíblia em português; os registos financeiros das transações envolvidas na complexa estrutura comercial desenvolvida pela SBBE; documentação diversa relativa ao processo editorial; material fotográfico e gráfico; e, finalmente, os Relatórios anuais, mensários e materiais de divulgação publicados pela SBBE ao longo dos séculos XIX e XX. O meu foco era o papel da Sociedade Bíblica em Portugal e naturalmente isso condicionou o tipo de documentação que consultei, mas tendo em conta que os objetivos de Sociedade Bíblica são de natureza global, muito mais se pode encontrar naquele Arquivo.

(Archivoz)  Como foi a sua experiência em Cambridge nos arquivos da Sociedade Bíblica?

RML A minha experiência foi excelente. Tanto pela riqueza da documentação que encontrei, como pelo profissionalismo dos serviços da Biblioteca da Universidade de Cambridge, como pelo ambiente da própria Universidade, que convida à reflexão, trabalho sistemático e foco nos objetivos traçados. O Arquivo da Sociedade Bíblica está extremamente bem organizado e o Arquivista  – Dr. Onesimus Ngundu – esteve sempre disponível e foi absolutamente incansável.

(Archivoz)  No seu entender os arquivos de instituições religiosas são arquivos por explorar ou considera que existe algum tipo de preconceito em relação a este tipo de instituições arquivísticas?

RML Tendo em conta a minha área de investigação e a unidade onde a desenvolvo – o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (UCP-CEHR) – não parto naturalmente de uma posição neutra na resposta a esta questão, uma vez que trabalho diariamente com colegas e com objetos de estudo que necessitam dos arquivos da instituições religiosas (entre outros) para desenvolver a sua investigação. Não noto portanto este tipo de preconceito; sendo antes testemunho da importância, e mais do que isso, da imprescindibilidade deste tipo de Arquivos para se desenvolver a análise histórica nos campos não apenas do religioso, mas do social, da cultura e da política e da economia, em relação aos quais estes arquivos constituem fonte fundamental.