Entrevistámos Sandra Patrício, responsável pelo Arquivo Municipal de Sines, membro do Grupo de Trabalho dos Arquivos Municipais da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Profissionais da Informação e Documentação.

(ARCHIVOZ) Fale-nos um pouco do seu percurso académico e profissional até chegar a responsável pelo Arquivo Municipal de Sines, onde coordena a organização do sistema de arquivos da Câmara Municipal de Sines, em 2005.

(Sandra Patrício) Comecei por estudar história durante a minha licenciatura na Universidade de Coimbra. Queria conhecer melhor a história do meu país e também da minha cidade, e partilhar esse conhecimento com os meus concidadãos. No meu terceiro ano descobri os arquivos, o início de todo o conhecimento histórico, como futura área profissional. Decidi então prosseguir os estudos na área das então chamadas ciências documentais, na sua especialização em arquivos. Rapidamente percebi que os históricos são apenas uma parte dessa grande galáxia que são os arquivos. Para que haja arquivo histórico é necessário que a produção exista, assim como a seleção e conservação, desde o primeiro momento, junto das administrações produtoras, sejam públicas ou privadas.

Felizmente a minha cidade natal, Sines, estava prestes a inaugurar um novo edifício onde se iria instalar, entre outras valências, o arquivo histórico.  Primeiro foi o choque com a realidade, tão diferente do que se aprende nos cursos superiores. Mas graças aos colegas arquivistas do Arquivo Distrital de Setúbal e dos arquivos municipais vizinhos, bem como dos colegas administrativos experientes da própria Câmara Municipal, foi possível começar a conhecer a complexidade de um sistema de informação local.  Digo começar a conhecer, porque um sistema de informação de uma câmara municipal é vasto e multifacetado, não apenas pela sua idade ou pelos diferentes suportes que a informação assume, mas especialmente pela sua característica de garantir o funcionamento de uma comunidade e garantir a possibilidade da sua memória, mesmo quando, como no caso de Sines, é multinucleado.

(ARCHIVOZ) No seu notável CV sobressai, no que respeita a publicações, a extensa obra sobre a história e o património de Sines. Gostaria que nos dissesse como é que nasceu o interesse em estudar esta bela cidade e que destacasse os principais trabalhos publicados nesse sentido.

(SP) O meu interesse começou bem cedo. Sou filha de migrantes que vieram do concelho vizinho de Odemira para Sines, que se desenvolvia como grande complexo industrial e portuário nos anos 80 do século XX. Portanto, eu própria sou fruto de um fenómeno histórico. A mudança, e a forma como podemos conhecê-la e nela participar, sempre me causou espanto e me interpelou.

Dar a conhecer a história e o património deste concelho é uma forma de dialogar com os meus concidadãos, mostrar-lhes que o que vivemos hoje não surgiu do nada e não é garantido. E sabemos isso porque temos vestígios que foram produzidos ao longo das gerações, que continuam a produzi-los incansavelmente. Se não tomamos conta deles, desses vestígios, se não formos solidários com as gerações passadas e as futuras, então perdemos o esteio da nossa identidade individual e coletiva. A história local pode ser um excelente veículo para demonstrar como a informação arquivística é fundamental para uma comunidade.

Neste sentido, destaco a monografia Sines, a Terra e o Mar, escrita em parceria com a arqueóloga Paula Pereira e fruto do conhecimento obtido através da investigação dos sistemas de informação locais e da sua relação com sistemas de informação centrais e regionais.

Outro trabalho que registo é a publicação, desde 2005, no boletim municipal, da rubrica Arquivo Aberto, sobre a documentação do Arquivo Municipal de Sines e o conhecimento que poderemos construir a partir dela.

(ARCHIVOZ) Um excelente exemplo desse interesse por Sines é a sua tese de doutoramento, defendida em 2018, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o título “Sistemas de informação das administrações civis no concelho de Sines (1655-1855”. Quais foram as principais conclusões a que chegou?

(SP) Em primeiro lugar, que existem sistemas, não um sistema. Num pequeno espaço geográfico como o do concelho de Sines, durante as épocas Moderna e Contemporânea, vários produtores existiram e se relacionaram, quer coexistentes no espaço geográfico do concelho, quer a nível regional e nacional. Além da câmara municipal, cujo fundo decorre da singularidade do município enquanto senhorio territorial e jurisdicional durante a Época Moderna, procurou-se estudar as relações estabelecidas com outras entidades a nível regional e nacional. O período cronológico corresponde ao início da existência de informação contínua produzida e preservada pela câmara municipal, mas também o advento do Liberalismo e as suas mudanças, que determinaram mesmo a extinção do concelho em 1855. Assim identificaram-se vários sistemas, que resultaram do funcionamento das várias jurisdições: câmara municipal, juízo geral, juízo dos órfãos, juízo dos órfãos, juízo das sisas e almotaçaria.

Com a revolução liberal, a divisão dos poderes e o fim da autonomia municipal como senhorio territorial e jurisdicional alteraram o funcionamento do poder local, e, consequentemente, os seus sistemas de informação. Os sistemas de informação locais são fruto de uma comunidade, mudam com a evolução do seu produtor e da sua comunidade.

Assim, os momentos de rutura foram dois. O primeiro quando vários produtores do Antigo Regime foram extintos e as suas funções transferidas para novas instituições. O segundo foi a extinção do concelho, quando o arquivo da câmara extinta acompanhou a transferência da jurisdição para Santiago do Cacém, sede do concelho alargado. O sistema fechou-se, deixou de produzir nova informação, desta feita produzida pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém. O conjunto informacional, hoje disponível no Arquivo Municipal de Sines, produzido entre 1512 e 1855, é de facto um sistema de informação definitivo, ainda que, dada a continuidade do seu produtor e de algumas das suas funções, mantenha relações temporais com o sistema atual. O mesmo, aliás, pode dizer-se do seu produtor. A Câmara Municipal e o concelho extintos em 1855 são os antecessores da Câmara Municipal e do concelho restaurados em 1914.

Mas na mudança houve continuidades. O acto administrativo e o acto escrito nem sempre foram simultâneos, e vários actos administrativos tiveram lugar de forma oral, sem qualquer materialização escrita. As mudanças do liberalismo não destruíram o registo de actos como a principal característica do sistema. A informação que persistiu foi aquela que foi inscrita num suporte e aquela que sobreviveu a actos de avaliação conscientes e a destruições resultantes do acaso. Por outro lado, os produtores materiais e as elites locais foram agentes relevantes para a constituição dos sistemas de informação.

(ARCHIVOZ) Quais os projetos e atividades científicas mais relevantes que coordenou, e que se encontra a desenvolver, na qualidade de responsável pelo Arquivo Municipal de Sines?

(SP) Um dos projetos ainda a decorrer, e que não é propriamente científico, é a aplicação da Lista Consolidada no município. Em primeiro lugar porque implica uma aprendizagem contínua, e ainda não terminada da organização e do próprio instrumento, sempre em coordenação com os serviços produtores. A pandemia interrompeu as ações de formação prestadas aos produtores materiais da informação, que são momentos de aprendizagem também para a Unidade de Gestão Documental e o Arquivo.

Dado que a portaria de gestão documental para as autarquias de acordo com a Lista Consolidada ainda não foi publicada, apesar de os arquivos municipais estarem envolvidos na elaboração do instrumento desde o início, os arquivos municipais defrontam-se com importantes problemas, no presente e a curto prazo. A informação produzida, entretanto, pela organização está num limbo no que se refere à avaliação: foi produzida num contexto diferente da portaria atualmente em vigor, logo esta não é aplicável; ainda não existe um instrumento que permita a sua avaliação, que, quando existir, só se aplicará a partir da sua publicação. Felizmente há já instrumentos, nomeadamente a Ficha Técnica n.º 11 publicada pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que tem como objeto a Elaboração de Relatórios de Avaliação Simplificados (https://arquivos.dglab.gov.pt/wp-content/uploads/sites/16/2021/03/FT11_RAS.pdf ). Por outro lado, este instrumento será imprescindível para a aplicação do Regulamento Geral de Proteção de Dados para as autarquias, ao definir regras claras para a avaliação e o acesso à informação.

Estes serão dos desafios mais relevantes e desafiantes num futuro próximo: avaliar a informação produzida no quadro da portaria que será revogada, aplicar a futura portaria de acordo com a Lista Consolidada e o Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Outro projeto, mais ligado aos sistemas de informação pretéritos, diz respeito aos quadros de classificação dos fundos do Arquivo Municipal de Sines, que estão a ser revistos ou produzidos de acordo com o estudo orgânico-funcional e em comparação com a descrição e os quadros de classificação já produzidos por outros arquivos. Um dos grandes desafios é da coleção factícia Mosaico das Memórias, constituída quer por documentos doados por munícipes, quer por imagens de documentos emprestados e devolvidos aos munícipes.

(ARCHIVOZ) Na sequência da questão anterior, gostaria que destacasse a coordenação, de que é responsável, ao nível dos instrumentos de acesso à informação do Arquivo Municipal de Sines, acessíveis no sítio eletrónico da Câmara Municipal de Sines, e o Serviço Educativo do Arquivo Municipal, integrado no Centro de Artes de Sines.

(SP) A publicação dos instrumentos de descrição documental em linha no sítio eletrónico é imprescindível, dado que ainda não foi possível disponibilizar uma base de dados de descrição arquivística. Assim, a disponibilidade estes instrumentos é a porta de entrada para investigadores e cidadãos no Arquivo Municipal, mesmo que não se desloquem fisicamente ao local. Mesmo com uma base de dados em linha os instrumentos são úteis por dizerem respeito a unidades de informação organizadas por produtor, quando são inventários de fundos, ou para tornar claras as relações informativas entre subdivisões do mesmo fundo ou de vários fundos.

Tendo em conta estas opções, o Arquivo Municipal tem vido a publicar inventários de fundos (Administração do Concelho, por exemplo) e de partes de um fundo, nomeadamente um nível de descrição como a série (como a correspondência recebida pela Câmara Municipal de Sines durante o Estado Novo). Por outro lado, tem vindo a produzir instrumentos específicos decorrentes de projetos de salvaguarda de documentação arquivística como a produzida pelas comissões de moradores e cujos produtores são externos à Câmara Municipal e mantêm a propriedade da informação. Neste âmbito, muito trabalho de descrição e divulgação está ainda por fazer.

O trabalho da difusão é essencial e opera-se em colaboração com o Centro de Artes de Sines, no que respeita à formação de utilizadores e à divulgação do património arquivístico e da história local. Durante a pandemia recorreu-se às novas ferramentas tecnológicas, nomeadamente as redes sociais do município, para interagir com os utilizadores. Esperamos retomar as oficinas e as visitas presenciais em 2022

(ARCHIVOZ) Considerando a grande dinâmica que carateriza o Arquivo Municipal de Sines, quais os principais projetos em curso e os que estão planeados para 2022?

(SP) Além do trabalho fundamental já mencionado acima acerca da aplicação da Lista Consolidada e do tratamento de arquivos pretéritos, prosseguem as ações de inventário e salvaguarda da documentação das coletividades locais. Neste momento o Arquivo Municipal encontra-se a tratar os arquivos de duas coletividades locais. A primeira é o Vasco da Gama Atlético Clube, coletividade criada em 1966 a partir da união de dois clubes desportivos locais. A sua informação encontra-se no produtor, e o Arquivo Municipal está a apoiá-lo no inventário, preservação e comunicação do seu arquivo. Este é um projeto a longo prazo, que resultará num catálogo e numa exposição, embora não se conclua em 2022.

O segundo arquivo é o da Associação de Carnaval de Sines doado ao município recentemente. Constitui uma fonte direta para conhecer uma das manifestações culturais mais representativas do concelho, com ampla participação popular. O trabalho de registo, acondicionamento e limpeza, descrição e comunicação terá um momento importante em 2022, que resultará numa exposição conjunta com o Centro de Artes de Sines e na publicação de descrições.

(ARCHIVOZ) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 provocaram alterações profundas nos serviços de informação em Portugal, desde a organização do trabalho interno, ao atendimento aos utilizadores e à comunicação da informação. Como responsável pelo Arquivo Municipal de Sines, o que nos pode dizer da sua experiência neste período tão singular e difícil, que infelizmente ainda não terminou. Que desafios e oportunidades gostaria de destacar, desde meados de março de 2020 até ao presente?

(SP) O Arquivo Municipal foi considerado essencial durante estes tempos difíceis. Fechou ao público presencialmente durante curtos períodos de tempo, mas esteve sempre em funcionamento para a administração e os munícipes. Foi possível desenvolver e incrementar processos já em andamento, mas que ainda não eram centrais, nomeadamente a consulta remota e a digitalização.

Dado que o Arquivo ainda não dispõe de uma base de dados em linha, a interação manteve-se por outras vias: o sítio e o correio eletrónico, o telefone e até as redes sociais, estas últimas para divulgação de documentos e iniciativas. Aprendemos a contornar a fisicalidade do acesso à informação, encontrando outros mecanismos, que tornam o espaço um pormenor.

O fornecimento de documentos digitalizados foi fundamental para a continuidade do desempenho das funções da administração, dado que uma parte dos funcionários esteve em teletrabalho. Além desta vertente, as consultas telefónicas de actos e factos por parte dos serviços intensificou-se, assim como a sua utilização das aplicações de gestão documental e consequente apoio do Arquivo para a sua utilização e recuperação da informação. É certo que há riscos para as organizações neste ambiente remoto, especialmente porque a transição foi repentina e é possível que parte da tramitação, distribuída por caixas de correio eletrónico e aplicações de negócio, não tenha sido registada de forma eficaz e eficiente. Mais uma vez, a centralidade da gestão de informação numa organização evidenciou-se. A administração não pára, embora ande mais devagar, e os arquivos seguem os seus passos.

(ARCHIVOZ) Tendo em conta o seu percurso e experiência nesta área, como é que vê o futuro dos arquivos em Portugal e quais é que pensa que são os grandes riscos, desafios e oportunidades para os seus profissionais?

(SP) Os arquivos estão numa encruzilhada. Se é verdade que cada vez mais há recursos humanos qualificados, a sociedade não os reconhece como gestores da informação arquivística. Têm que competir com informáticos e agora, mais recentemente, com os juristas da proteção de dados. No entanto, o seu papel inicial e fundamental, que é o de gerir a informação produzida por uma organização de forma a mantê-la sempre acessível e capaz de manter a organização em funcionamento, fazer prova e garantir a sua memória e a da comunidade, não mudou ao longo do tempo. O que mudou foram os contextos de produção e de acesso à informação, que exigem cada vez mais conhecimentos e competências diversificados, porém, específicos dos profissionais. Não chega saber história, não chega saber programação, não chega conhecer muito bem o ambiente regulador. São necessárias equipas multidisciplinares em que os arquivistas, pelo seu conhecimento e experiência, tal como os profissionais de outras áreas, possam trabalhar em conjunto. Isto sob pena de estamos a constituir grandes massas de informação eletrónica que não será preservada, não vai ser acessível e pode não ser de confiança. Mas os arquivistas têm que ser reconhecidos como profissionais da informação, não apenas como guardiães de arquivos históricos poeirentos e que são apenas consultados por velhos professores e curiosos. A informação custodiada pelos arquivos interessa a todos os cidadãos. Por consequência, cabe-nos a nós divulgar a informação que gerimos e demonstrar a sua necessidade. Cidadãos conscientes exigem das organizações um comportamento responsável no que concerne à informação. O que nos falta a nós enquanto classe profissional é reforçar esta mensagem: sem que a informação produzida pelas organizações exista e seja acessível, não há democracia.

Imagem cedida pelo entrevistado: Visita guiada à exposição do projeto Dizeres, em setembro de 2020.


Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista

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