Entrevistámos Maria Isabel Roque, Professora na Universidade Europeia e na Universidade Católica Portuguesa, .investigadora no CIDEHUS-UÉ.

(ARCHIVOZ) Não poderia deixar de começar por destacar o seu extraordinário e diversificado currículo, ao nível académico, experiência docente no Ensino Superior, orientações, júri de grau académico, publicações, comunicações, comissariado de exposições, cargos de gestão académica, organização/coordenação de eventos, distinções recebidas, etc. Fale-nos do seu percurso formativo e profissional até chegar às funções que desempenha atualmente, como Professora Auxiliar na Universidade Europeia e na Universidade Católica Portuguesa.

(Maria Isabel Roque) O meu percurso académico e profissional foi disperso, mas transversalmente ligado à museologia e ao património. Na pós-graduação na Universidade Lusíada, tive a Prof. Natália Correia Guedes como docente, que foi uma pessoa determinante, tendo orientado a minha dissertação de Mestrado e a tese de Doutoramento e com quem trabalhei ao longo da década de 1990, nas exposições organizadas pela Conferência Episcopal Portuguesa e no Pavilhão da Santa Sé na Expo’98 e na elaboração da versão portuguesa do Thesaurus: Vocabulário de Objetos do Culto Católico. Em 2000, na Biblioteca Nacional, integrei a equipa que preparou e lançou a primeira fase da biblioteca nacional digital e, na sequência desta, trabalhei na edição digital de outras bibliotecas focadas sobretudo no livro antigo, até cerca de 2010. Entretanto, comecei a lecionar na Universidade Católica Portuguesa e, desde 2007, no curso de turismo, no antigo ISLA, atual Universidade Europeia. Estas circunstâncias levaram-me a fazer convergir os estudos ligados ao património artístico e religioso, aos estudos de museu, às humanidades digitais e ao turismo, sendo no cruzamento destas matérias que desenvolvo a investigação.

(ARCHIVOZ) Em 2006 doutorou-se em História da Arte, com 19 valores, com a tese Musealização do Sagrado: Práticas Museológicas em Torno de Objectos do Culto Católico. Quais foram as principais conclusões a que chegou na investigação que desenvolveu?

(MIR) A investigação pretendia analisar a forma como o sagrado, o total interdito, podia ser exposto no espaço profano e público do museu. O estudo restringiu-se ao universo dos objetos do culto católico, onde o conceito de sacralidade definitiva e permanente tem um caráter entitativo, exclusivo ao corpo de Cristo na hóstia consagrada. No âmbito do catolicismo, as alfaias litúrgicas que sejam modificadas ou desafetas ao culto, são implicitamente execradas e podem assumir outras funções, nomeadamente, de cariz museológico.

Os objetos litúrgicos e devocionais integram as coleções museológicas, desde a criação dos primeiros museus em finais do século XVIII, embora fossem apresentados como obras de arte, perdendo todas as referências ao significado original. Não obstante, os públicos conseguiam apreender o sentido dos objetos que faziam parte das suas vivências religiosas quotidianas. Mais recentemente e considerando a crescente iliteracia religiosa dos públicos, os significados intangíveis tornam-se cada vez mais opacos, reforçando os efeitos da descontextualização provocada pela transferência do objeto para o museu. Por esse motivo, os museus têm vindo a considerar a necessidade de contrariar a tendência da museologia da arte, que privilegia os valores materiais, patrimoniais e estéticos, para encontrar um modelo de museologia da religião, recuperando os dados relacionados com a função, significado e simbologia do objeto.

(ARCHIVOZ) É responsável, desde 2014, pela criação do blogue a.muse.arte, que se encontra disponível em https://amusearte.hypotheses.org/, há muito uma referência na área da museologia. O que nos pode apresentar sobre este notável projeto, que ainda bastante recentemente, em 2019, recebeu o prestigiado Prémio Comunicação Online?

(MIR) O blogue foi pensado como um espaço de opinião e análise crítica sobre temas de museologia e arte e procura contrariar o vazio deste tipo de publicações em Portugal. A designação a.muse.arte, integrando estes termos, é uma derivação da expressão amuse-bouche, apontando para uma escrita leve, com textos mais breves e despretensiosos daqueles que se exigem em artigos académicos. No entanto, procura efetuar uma análise rigorosa, baseada em métodos de investigação científica e fundamentada em referências bibliográficas. Privilegiando um modelo de observação independente, sem constrangimentos nem interesses subjacentes, a escolha dos temas e o ritmo das publicações obedece apenas ao gosto e à vontade de quem escreve e, sobretudo, às oportunidades que surgem em momentos de maior disponibilidade. Não pretendendo alcançar o estatuto de referência na área da museologia, tem o propósito de suscitar a reflexão e o questionamento em quem o lê e se interessa por estas temáticas.

(ARCHIVOZ) Ainda no domínio digital, é responsável pela página https://www.facebook.com/humanidadesdigitais e  pelo grupo https://www.facebook.com/groups/artemuseuspatrimonio, incontornáveis para todos os que se interessam e querem estar a par do que acontece no mundo das Humanidades Digitais, e da arte, museus e património. Pode apresentar-nos estes projetos e dar-nos conta dos seus objetivos e resultados alcançados, desde logo no público a que têm conseguido chegar?

(MIR) São dois projetos de âmbito e dimensão distintos, ambos criados e mantidos juntamente com Dália Guerreiro. A página Digital Humanities, Humanidades Digitais tem, como objetivo, divulgar eventos e publicações neste âmbito. Dirige-se a um público especializado e tem atualmente 1200 seguidores. Por seu turno, o Arte, Museus e Património é um grupo público, criado em 2018, e pretende funcionar como uma plataforma de informação nos domínios das artes visuais, dos museus e do património cultural, recolhendo notícias atualizadas, artigos de opinião, estudos científicos e de divulgação. Em maio de 2021, ultrapassou os 73.000 membros, dos quais cerca de 2/3 são membros ativos, com um ritmo regular de publicações. Embora inicialmente todos os membros do grupo pudessem publicar diretamente, o aumento de anúncios e de publicações inadequadas ou marginais aos temas do grupo, obrigou a que as publicações sejam sujeitas à aprovação por parte dos administradores. Este é um grupo destinado a um público generalista e os membros são, sobretudo, portugueses, do género feminino e situam-se maioritariamente nos grupos etários acima dos 45 anos.

(ARCHIVOZ) O seu mais recente trabalho publicado, no final de 2020, na Revista Lusófona de Estudos Culturais, intitula-se Descolonizar o museu: Exposição e mediação dos espólios africanos em museus europeus. O que nos pode dizer sobre esta questão, que se encontra na ordem do dia?

(MIR) Os primeiros museus públicos, criados no contexto ideológico da legitimação dos nacionalismos, constituíram-se como repositórios de identidades nacionais e funcionavam como um instrumento de propaganda das políticas imperialistas e coloniais, incorporando objetos de outras culturas. Tal como aconteceu com os objetos religiosos, também estes foram estetizados e perderam o seu sentido original.  Mantendo a mesma organização e sem que os discursos tenham sido substancialmente reformulados, os museus são espaços colonizados. A politização das questões relativas à descolonização do museu tende a ser muito redutora, restringindo-se à devolução dos objetos aos grupos culturais de origem. Este processo, aparentemente simplista, é de uma extraordinária complexidade, atendendo a todas as variáveis e condicionantes implicadas. Nalguns casos, será mesmo inviável, por já não ser possível identificar ou localizar as comunidades de origem. A descolonização deve ser mais ampla e profunda, envolvendo a análise e a discussão do fenómeno colonial, das suas circunstâncias, consequências e persistências na sociedade contemporânea. No museu, isto implica a elaboração de um novo discurso, baseado na investigação antropológica orientada para a recuperação do significado funcional, mágico ou religioso desses objetos, privilegiando os modelos de curadoria partilhada com as comunidades de origem, reconhecidas como fonte primária do conhecimento. A descolonização do museu implica, em primeiro lugar, as suas narrativas, eliminando as perspetivas eurocêntricas, evolucionistas e positivistas, substituindo-as por uma efetiva mediação dos seus significados originais. A análise do historial da musealização destes objetos contribuirá igualmente para a compreensão do fenómeno de colonização museal.

(ARCHIVOZ) Considerando a primeira questão, e o destacado trabalho que tem feito em prol da museologia, contribuindo decisivamente para que este chegue ao grande público, como é que encara o futuro desta área, particularmente em Portugal, e quais pensa serem os grandes desafios que os respetivos profissionais têm de enfrentar, ao nível da organização, preservação e divulgação das respetivas coleções e acervos?

(MIR) O principal desafio prende-se, na minha perspetiva, com a gestão dos recursos que são, invariavelmente, escassos ou mal distribuídos. A gestão dos recursos financeiros e humanos tem um forte impacto na organização, preservação e divulgação dos acervos e é transversal aos museus sob tutela do Ministério da Cultura ou outros dependentes da administração central, dos governos regionais, da administração local, ou de privados. Por outro lado, a formação dos profissionais dos museus tem vindo a ser objeto de debate, revelando as fragilidades do setor: numa altura em que o acesso à informação é incrementado a níveis inusitados, mas o conhecimento especializado se torna mais restrito, quais os requisitos formativos para as diferentes profissões museais? Esta questão tende a circunscrever-se à dicotomia entre estudos de museu ou formação no domínio científico da coleção, mas deve alargar-se a outros campos, como a gestão e a comunicação, igualmente descurados na oferta formativa.

Apesar da dificuldade em efetuar prognósticos, é provável que o futuro dos museus passe pela consolidação da museologia centrada nos públicos, estimulando a sua participação ativa, enquanto sujeitos enunciadores do discurso, em projetos colaborativos e cocriativos. Preconiza-se uma vivência mais imersiva do espaço museológico, no âmbito das estratégias comunicacionais, favorecendo o conhecimento sem descurar o entretenimento. Prevê-se que, desta forma, os públicos se sintam mais envolvidos e comprometidos na preservação dos acervos e do conhecimento que lhes é inerente, tornando o museu numa zona de contacto e de conexões.

(ARCHIVOZ) Um assunto que, infelizmente, continua a marcar a atualidade é o novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19, que colocaram novos desafios aos museus, fazendo com que os seus responsáveis e colaboradores tivessem de se adaptar a novas metodologias e formas de trabalhar. Procurando fazer uma análise desta nova realidade, que começou em meados de março de 2020, entende que os museus portugueses foram capazes de se adaptar e responder eficazmente aos desafios e oportunidades surgidas?

(MIR) A resposta dos museus portugueses à crise pandémica não foi uniforme. Houve alguns museus que responderam de forma proficiente, enquanto outros foram mais passivos ou, mesmo, inativos. Além disso, foi possível identificar dois tipos de atuação: a transposição das atividades habituais no espaço físico do museu, como as visitas guiadas ou a explicação de alguns objetos, para o ambiente digital; a criação de conteúdos inéditos e de atividades dirigidas a uma audiência exclusivamente virtual. Provavelmente, o efeito mais acentuado terá sido a transformação digital. A maior parte dos museus já tinham aderido às tecnologias da informação e comunicação, mas divergiam na quantidade e qualidade dos conteúdos e, sobretudo, na importância que lhes atribuíam. Durante a pandemia, com o encerramento dos museus, os meios digitais constituíam a principal forma de comunicação disponível, eliminando os habituais constrangimentos em relação à representação virtual. Os museus portugueses adaptaram-se, responderam aos desafios e agarraram as oportunidades, aproveitando o potencial das tecnologias de informação e de comunicação na relação com audiências alargadas, bem como os benefícios da comunicação segmentada, utilizando os websites e as redes sociais para uma interação adaptada às diferentes audiências. Por outro lado, os tempos de pausa serviram para reformular discursos, para preparar novas exposições e experimentar modelos museográficos. O objeto exposto no museu mantém a aura de autenticidade e o museu garante os seus valores identitários. Foi, no entanto, possível confirmar que as estratégias de informação e comunicação digital, propiciando novas leituras, contribuem para o seu conhecimento e promovem a interação com públicos cada vez mais alargados, sejam reais ou virtuais.

Imagem cedida pelo entrevistado.
Público junto à parede retroiluminada com reproduções da obra Tacuinum sanitatis
Exposição “Hortas de Lisboa: Da Idade Média ao século XXI”
Lisboa, Museu de Lisboa, Palácio Pimenta


Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista

Banner portugués

Share This