(Archivoz) Fale-nos um pouco do seu percurso profissional e académico até chegar a diretor regional da nova Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira.

(Nuno Mota) Sou licenciado em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, fiz um mestrado curricular em Sociologia e Economia Históricas pela mesma Faculdade e uma pós-graduação em Ciências Documentais pela Universidade da Madeira. Integrei em 2006 o Arquivo Regional da Madeira (depois, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira) e foi aqui que realizei todo o meu percurso profissional, sobretudo no âmbito da descrição e tratamento documental de arquivos históricos, tendo também realizado investigação em articulação com esses projetos arquivísticos. Em janeiro de 2020 assumi funções de Diretor Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira.

(Archivoz) Gostaria que nos apresentasse a Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira, desde o seu enquadramento orgânico e direções de serviço que integra, mas também a sua história, missão e visão.

(Nuno Mota) A DRABM foi instituída em janeiro de 2020 e a sua orgânica implementada a partir de abril seguinte. A estrutura orgânica nuclear da DRABM, que integra seis direções de serviço, compreende três instituições com um historial próprio: o Arquivo Regional da Madeira, criado em 1931 enquanto Arquivo Distrital do Funchal; a Biblioteca Pública Regional da Madeira, criada em 1979 enquanto Biblioteca de Documentação Contemporânea, única beneficiária na Madeira do depósito legal e órgão de gestão da rede regional de bibliotecas; e o Centro de Estudos de História do Atlântico – Alberto Vieira, instituído em 1985. A DRABM não dispõe de estrutura nuclear flexível.

As unidades orgânicas da DRABM têm atribuições e intervenção nos seguintes setores: aquisições e gestão de depósitos; conservação e restauro; gestão e tratamento de arquivos; gestão e tratamento de bibliotecas; comunicação e acesso; Centro de Estudos de História do Atlântico – Alberto Vieira (CEHA). A DRABM tem como missão “Salvaguardar e divulgar o património documental e bibliográfico da Região Autónoma da Madeira, assegurar a memória contínua da sua Administração, incentivar a difusão do livro e da leitura, e promover o conhecimento e a investigação científica da história da Região no quadro do espaço atlântico”. Centraliza no seu enunciado de visão a dinamização e a promoção do conhecimento, da história e da cultura madeirenses e o fortalecimento de uma cidadania participativa a partir da exploração da dimensão social e inclusiva da informação. Estrategicamente privilegia as Tecnologias de Informação e Comunicação enquanto meio para facilitar, simplificar e democratizar o acesso ao património documental e bibliográfico regional.

A estrutura nuclear desta nova Direção Regional, e designadamente o facto de ser composta por seis direções de serviço, terá porventura sido recebida como excessiva e desproporcionada face à dimensão e composição orgânica de instituições congéneres em Portugal. Julgo que alguns elementos deixados atrás nesta resposta, e nomeadamente o facto de a DRABM integrar três instituições com um historial próprio e de ainda enquadrar a totalidade do acervo de uma quarta instituição de perfil museológico (o Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s), resolvem ou esvaziam essa questão. Mas a esses elementos há que acrescentar um derradeiro. A DRABM exerce funções de arquivo definitivo da administração regional autónoma. Note-se que a autonomia administrativa, antecedente do atual regime político e administrativo autonómico, remonta na Madeira ao ano de 1901 e à criação da Junta Geral Autónoma do Distrito do Funchal. A administração autónoma foi, entretanto, ampliada em 1928, depois codificada e normalizada pelo Estado Novo em 1940 (com o Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes), e, por fim, profundamente reforçada com uma dimensão política e legislativa a partir de 1976. Em termos arquivísticos, isso significa que na Madeira existe, desde 1901, um universo documental singular resultante de um contexto específico da administração do Estado no quadro insular atlântico. Portanto, um vasto universo arquivístico, sem paralelo nos distritos do Continente, que cabe à DRABM preservar. Neste contexto, não faz qualquer sentido, para aferir a razoabilidade da sua composição e dimensão orgânica, comparar a DRABM, por exemplo, ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo ou a um arquivo distrital, desde logo porque a DRABM está muito longe de ter atribuições apenas no âmbito dos arquivos. Poderíamos com mais propriedade afirmar que a DRABM, na sua escala regional de atuação, tem alguma correspondência com as funções que, numa escala nacional, são exercidas pela DGLAB e pela BNP, com as suas várias dezenas de unidades orgânicas nucleares e flexíveis. Mas mesmo nesse caso a comparação terá de ser efetuada com algum distanciamento, naturalmente em virtude de toda uma multiplicidade de razões, mas entre elas o facto de as funções de arquivo definitivo da administração central se encontrarem hoje em grande medida externalizadas da DGLAB e dispersas por toda uma miríade de arquivos, e em particular pelos arquivos históricos que funcionam junto de vários Ministérios e serviços dependentes, enquanto que na Madeira as funções de arquivo definitivo da administração regional autónoma e de todas as Secretarias Regionais e serviços que integram o Governo Regional da Madeira estão centralizadas na DRABM. Neste quadro, fica claro que a composição orgânica da DRABM é tudo menos excessiva.

Na verdade, a criação da DRABM é uma derivação natural da fusão, sucedida em 2016, de duas instituições que desde 2004 partilham o mesmo edifício e toda uma diversidade de meios e recursos: o Arquivo Regional da Madeira e a Biblioteca Pública Regional; representa o corolário de políticas públicas regionais que procuram efetivamente valorizar o património cultural e histórico e reforçar o investimento na sua preservação e divulgação, e significa naturalmente um desafio, a vários níveis, e desde logo ao nível da gestão da informação. A este respeito estou convicto de que as vantagens deste modelo centralizado de gestão do património documental e bibliográfico regional se sobrepõem aos inconvenientes. Numa palavra, essas vantagens prendem-se com os benefícios da integração da informação – enquanto meio privilegiado de promoção do conhecimento e de experiência da memória, da cultura e do património, em benefício da comunidade, em toda a sua diversidade e extensão.

(Archivoz) Relacionado com a questão anterior, o que nos pode dizer da política da qualidade promovida pela Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira e quais os resultados alcançados nesse sentido?

(Nuno Mota) O sistema de gestão da qualidade, em que o Arquivo Regional da Madeira tem certificação desde 2007 e a DRABM, como um todo, desde o ano da sua criação, em 2020, consiste fundamentalmente num meio para atingir alguns objetivos nucleares no plano da gestão: a racionalização, eficiência e simplificação dos processos de gestão; a otimização dos mecanismos de controlo e monitorização da atividade; a melhoria contínua dos recursos internos e dos serviços prestados; a implementação de uma cultura organizacional orientada para o “cliente” e centrada na qualidade. Por outras palavras: é uma forma de, enquanto organização, sabermos o que somos e onde estamos e de trilharmos, com alguma objetividade e sistematicidade, rumos que nos permitam chegar a um determinado lugar ou estado organizacional “ideal”.

(Archivoz) E no que respeita ao acervo documental à responsabilidade da Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira, quais os arquivos, fundos bibliográficos e coleções que compreende?

(Nuno Mota) A DRABM custodia 24,6 km lineares de documentos, que consubstanciam uma parte muito significativa do património documental histórico e bibliográfico conhecido e acessível da Região Autónoma da Madeira (RAM), onde se incluem conjuntos documentais que remontam aos primórdios da história do arquipélago e à conjuntura do seu povoamento no século XV, compreendendo, entre outros, todos os arquivos paroquiais da RAM, que remontam à primeira metade do século XVI, os arquivos históricos de todos os municípios da RAM, onde avultam as primeiras vereações do espaço atlântico, datadas desde 1470 (arquivo da Câmara Municipal do Funchal), os arquivos judiciais, que remontam ao século XVI, os arquivos das principais entidades administrativas e governativas supramunicipais que funcionaram no arquipélago, como o Governo dos Capitães-Generais, o Governo Civil do Distrito do Funchal ou a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, arquivos de entidades com tutela administrativa especializada, como a Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal ou a Alfândega do Funchal, arquivos de órgãos dependentes do Governo Regional da Madeira (sendo este um universo documental que só recentemente começou a ser objeto de incorporação) e vasta documentação iconográfica, universo documental onde se inclui o acervo do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s, composto por mais de 3 milhões de negativos e provas fotográficas, transferido por depósito para o Arquivo e Biblioteca da Madeira em 2016, ou o arquivo fotográfico do Diário de Notícias do Funchal, que compreende quase meio milhão de provas e negativos fotográficos. O acervo bibliográfico sob custódia da DRABM, no âmbito das funções de biblioteca pública regional, compreende quase 600 mil espécies bibliográficas, incluindo cerca de 550.000 monografias, uma coleção de livro antigo que remonta ao século XVI, uma coleção histórica de jornais com cerca de 260 títulos, incluindo os primeiros periódicos a serem publicados no arquipélago desde a década de vinte do século XIX, e várias bibliotecas, incluindo a Biblioteca de Culturas Estrangeiras e a Biblioteca do Arquivo Regional da Madeira, entre outras bibliotecas privadas que têm vindo a ser objeto de doação ou depósito. Entre o acervo à guarda da DRABM inclui-se ainda um acervo digital que ascende a 7,2 milhões de objetos digitais, maioritariamente constituído por réplicas digitais de suportes documentais de arquivo, produzidos para efeitos de acesso e no quadro de uma estratégia de transferência de suportes para fins de preservação. Destes 7,2 milhões de objetos digitais, mais de 2 milhões encontram-se disponíveis na plataforma de pesquisa de arquivos e mais de 1 milhão na plataforma de pesquisa de bibliotecas. Entre os objetos digitais disponíveis nesta última plataforma, não propriamente otimizada para funções de repositório digital – funções para as quais iremos proximamente implementar uma solução alternativa –, encontra-se a coleção de jornais, cuja replicação digital esperamos brevemente vir a concluir para a totalidade dos títulos, e que integra, por exemplo, o primeiro periódico madeirense, o Patriota Funchalense, publicado entre 1821 e 1823, e o Diário de Notícias do Funchal, um dos mais antigos jornais portugueses no ativo, que se publica desde 1876, e que será porventura o único periódico português integralmente disponível em linha em acesso livre cobrindo um lapso temporal de três séculos.

(Archivoz) Quais os principais projetos e atividades que se encontram a decorrer e os que estão planeados para 2022 pela Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira, desde o serviço educativo, a exposições e mostras, etc.?

(Nuno Mota) São muitos os projetos em curso e muitos outros que pretendemos iniciar no curto prazo no âmbito das nossas atribuições e múltiplas áreas de intervenção. Telegraficamente nomearia os seguintes: prospeção e integração de conjuntos documentais em risco, particularmente de origem privada; diagnóstico, avaliação e incorporação de arquivos da administração regional autónoma (pós-1976); reforço dos meios de digitalização; crescimento e diversificação do acervo desmaterializado, abrangendo novos universos documentais, em virtude de critérios como a sua utilidade social ou probatória (p.e., matrizes prediais dos séculos XIX e XX) ou valor secundário (p.e., processos de testamentos e legados pios dos séculos XVII a XIX), e novos suportes, incluindo o fotográfico e o fílmico; organização, tratamento, indexação (temática e geográfica) e disponibilização em linha em suporte digital do acervo do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s – um projeto verdadeiramente ciclópico em face da dimensão deste acervo, em que se encerra a memória do primeiro estúdio fotográfico português; dinamização da rede regional de bibliotecas; crescimento e diversificação do catálogo coletivo de bibliotecas da Madeira, com a adesão de novas bibliotecas e conclusão em 2022 da integração de todas as bibliotecas municipais da RAM; implementação de plataforma integrada de pesquisa de arquivos e bibliotecas; remodelação do sítio web da DRABM; implementação de nova biblioteca digital; implementação de portal para conteúdos educativos; dinamização do livro e leitura para públicos diferenciados, como o público infantil, incluindo crianças em idade pré-escolar, crianças em contexto de internamento pediátrico, crianças e jovens com necessidades especiais, público em contexto prisional (projeto “Liberdade de Ler”). Neste momento estamos a delinear novos projetos no âmbito da transição digital e visando o apetrechamento e qualificação dos recursos de recuperação de informação disponíveis em linha. Temos também procurado crescer e diversificar a edição própria da DRABM, da responsabilidade direta do CEHA, incluindo a edição da revista eletrónica Arquivo Histórico da Madeira, nova série. Relativamente ao CEHA, há todo um esforço de reorganização e dinamização desta estrutura que temos vindo a realizar e que aprofundaremos no futuro imediato, com a realização de encontros de divulgação científica (congressos, seminários, conferências, etc.) e a capacitação científica deste centro de investigação para a produção de conhecimento sobre história insular e sobre a participação da Madeira na construção do espaço atlântico. Em matéria de exposições temos previstas para este ano, entre outras, exposições sobre a presença do imperador Carlos d’Áustria na Madeira, no âmbito do centenário do seu falecimento no Funchal em 1921, sobre a Igreja Anglicana do Funchal, cujo arquivo histórico e biblioteca ingressaram em finais de 2021 no Arquivo e Biblioteca da Madeira, e ainda a itinerância no CEHA da exposição “Visões do Império”, com curadoria de Miguel Jerónimo e Joana Pontes, num projeto em colaboração com o Padrão dos Descobrimentos.

(Archivoz) O novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19 provocaram alterações profundas nos serviços de informação em Portugal, desde a organização do trabalho interno, ao atendimento aos utilizadores e à comunicação da informação. Como responsável por uma direção regional, estruturada em seis direções de serviços, o que nos pode dizer da sua experiência, como diretor regional, neste período tão singular e difícil, que infelizmente ainda não terminou. Que desafios e oportunidades gostaria de destacar, desde meados de março de 2020 até ao presente?

(Nuno Mota) O início da situação pandémica sobrepôs-se ─ caprichosamente ─ ao início da DRABM enquanto nova Direção Regional. O primeiro desafio esteve aí: na gestão de um processo de profunda transformação organizacional e institucional com a pandemia como pano de fundo. O segundo desafio prendeu-se com a manutenção de alguma normalidade na prestação de serviços, sendo que recorremos abundantemente ao acervo digital para, à distância e em contexto de teletrabalho, assegurarmos a continuidade principalmente das funções do acesso, do tratamento documental e da divulgação. Assim, a situação pandémica acabou por acelerar a implementação do balcão eletrónico do Archeevo, onde passámos a canalizar todos os pedidos de acesso a arquivos; por outro lado aproveitou-se a oportunidade para, a partir do acervo digital, produzir informação descritiva relativa a arquivos, destacando-se a produção, em contexto de teletrabalho, de mais de 60 mil descrições de registos de batismo anteriores a 1860, aproximando-nos com esta atividade descritiva ─ em que não investiríamos, pelo menos nesta dimensão, não fosse a situação pandémica ─ do objetivo de disponibilizar em linha descrições individuais (nível documento simples) de todos os registos paroquiais de casamento e batismo madeirenses que sobreviveram até aos nossos dias, num universo documental, datado de 1537 a 1911, que se mantém relativamente íntegro e que contém poucas lacunas.  Por fim, destacaria o esforço de virtualização da oferta em termos de divulgação, por exemplo com a criação de exposições virtuais e a disponibilização em linha de atividades de dinamização do livro e leitura para o público infantojuvenil. A procura da normalidade e continuidade possíveis dos serviços traduziu-se também no facto de as salas de leitura geral, infantojuvenil e do arquivo e reservados só terem estado encerradas nos meses de março a maio de 2020, reabrindo de forma condicionada a partir de junho (a sala infantojuvenil apenas para empréstimo domiciliário). Se tudo isto resultou numa queda de 89% no movimento de utilizadores presenciais em 2020, não deixámos de constatar um comportamento de refúgio no empréstimo domiciliário de livros, que em 2020 caiu muito menos (31,6%) do que o número de utilizadores presenciais, e que logo em 2021 atingiu o máximo histórico em volume de livros emprestados. Por outro lado, os acessos aos canais virtuais e, sobretudo, à plataforma de pesquisa de arquivos dispararam em 2020 e 2021, mais do que duplicando em número de visualizações e quase duplicando em número de acessos. Por estes indicadores é possível concluir que a situação pandémica não deixou de conduzir ─ como que paradoxalmente ─ ao reforço das funções do acesso, sobretudo pela via do digital e do virtual. Obviamente é sobretudo aí que reside para o setor a grande oportunidade que deriva da situação pandémica; uma oportunidade que, em todo o caso, jamais será potenciada e devidamente aproveitada se instituições como os arquivos e as bibliotecas não interpretarem este contexto como um verdadeiro incentivo à inovação e à mudança.

(Archivoz) Finalmente, gostaria de lhe perguntar como é que vê o futuro dos serviços de informação em Portugal e quais é que pensa que são os grandes riscos, desafios e oportunidades para os seus profissionais?

(Nuno Mota) No contexto atual, são variadíssimos os riscos e os desafios para o setor da informação e especificamente para o universo dos arquivos e das bibliotecas, que é difícil escolher por onde começar… Mas antes de tudo o mais destacaria esse risco verdadeiramente global de desgaste do próprio valor da informação no quadro social, como corolário do avanço de uma cultura sensorialista, centrada no primado do retorno imediato, acrítica e alheada dos alicerces da ciência e do conhecimento; uma cultura que por sua vez alimenta a polarização das redes sociais e contribui para a influência crescente do extremismo ideológico. Todas estas ameaças sistémicas e culturais aos valores da informação, do conhecimento e da ciência têm um denominador comum: o digital. Ora, tão nefasto quanto essas ameaças é o facto aparente de as políticas públicas em Portugal e os principais agentes no setor, designadamente no âmbito do livro e da edição, não terem percebido que é também no digital que essas mesmas ameaças se combatem. Portugal vive neste momento uma situação confrangedora no que diz respeito aos hábitos e à circulação social do livro e da leitura. No universo anglo-saxónico, no norte da Europa e em alguns países asiáticos a edição digital atinge números sem precedentes e ultrapassa claramente a edição tradicional, resultando daqui um potencial imenso para a dinamização do livro, da leitura e da literacia, particularmente junto das novas gerações. Em muitos destes contextos territoriais as bibliotecas públicas reinventaram-se, redefiniram o seu portefólio de serviços, reforçaram a sua integração com as comunidades envolventes e trouxeram novos públicos para o livro e a leitura ─ em grande medida porque abraçaram o desafio do digital há já muitos anos a esta parte. Em 2020, só o maior fornecedor mundial de serviços de empréstimo de livros eletrónicos para bibliotecas foi responsável por 430 milhões de empréstimos para utilizadores de bibliotecas em todo o mundo. No mesmo ano, e se excetuarmos as bibliotecas universitárias, nem um único livro eletrónico terá sido emprestado em Portugal através das nossas bibliotecas públicas! É uma situação embaraçosa para um país histórica e estruturalmente alheado da leitura e que carece urgentemente de recuperar do seu atraso nesta matéria. Em Portugal o setor do livro e da edição vive toldado por um conservadorismo paralisante e as políticas públicas parecem ser alheias ao potencial estratégico e de afirmação nacional e coletiva inerente ao livro, à leitura e à literacia.

Deste contexto de risco – aqui muito seletivamente traçado – não deixam de derivar algumas das principais oportunidades para os profissionais da informação, dos arquivos e das bibliotecas em Portugal, principalmente se forem capazes de gerir esse contexto com critério e aparato crítico, predisposição cultural ─ diria mesmo, ética ─ para a inovação e mudança, adesão às novas tecnologias e à transição digital não enquanto um fim em si mesmo mas como um meio para uma relação efetiva, diferenciada e dinâmica com a comunidade e para a promoção da informação enquanto valor e recurso ao serviço da mesma.

Em articulação com este último aspeto, e sem me querer alongar fastidiosamente, adicionaria um outro desafio que me parece assaz relevante e que se prende com a necessidade de a informação, enquanto área ou campo de conhecimento em Portugal, adquirir outra robustez do ponto de vista científico e coesão enquanto domínio de múltiplos saberes, libertar-se de certas lógicas de autorreferencialidade e insulação, concretizar a tantas vezes propalada promessa da multidisciplinaridade e ser capaz de aplicá-la fora de um quadro estritamente técnico, operatório e instrumental. Afirmando-se como domínio de um saber fundamentalmente operatório, o setor dos arquivos, das bibliotecas e da informação em Portugal jamais terá a capacidade de alterar o status quo que o circunscreve a uma dada posição de subalternidade e o condiciona na sua capacidade de afirmação, transformação da realidade e influência das políticas públicas. A informação comporta em si mesma o valor da universalidade e é um erro para o setor não retirar desse facto a plenitude das suas consequências.

Imagem cedida pelo entrevistado: Sala de Leitura Geral (Biblioteca)

Nuno Mota

Nuno Mota

Diretor Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira

Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tem mestrado curricular em Sociologia e Economia Históricas pela mesma Faculdade e pós-graduação em Ciências Documentais pela Universidade da Madeira. Integrou em 2006 o Arquivo Regional da Madeira (depois Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira) enquanto arquivista, tendo participado na avaliação, integração e tratamento dos arquivos da extinta Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal e coordenado múltiplos projetos de descrição e tratamento documental de arquivos históricos, tendo ainda produzido investigação em articulação com alguns desses projetos arquivísticos. Tem atualmente como principais interesses de pesquisa a memória social e a história dos arquivos e das práticas mnemónicas. Em janeiro de 2020 foi nomeado primeiro diretor da Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira.

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