Entrevistámos Levi Manuel Coelho, Diretor do Arquivo Distrital da Guarda.
(ARCHIVOZ) Gostaria que nos apresentasse o seu trajeto profissional académico, destacando as duas principais publicações, até chegar a Diretor do Arquivo Distrital da Guarda, em 2008.
(Levi Manuel Coelho) Na vida, à semelhança dos sistemas de arquivo, há sempre uma “ordem original”. Por isso e como no meu caso o início do meu “trajeto” académico precedeu o meu percurso profissional começarei por este.
Fiz a maior parte do ensino básico, a então chamada “escola primária”, em Celorico da Beira, uma típica vila do Distrito da Guarda e da Beira Alta. Logo na escola, comecei a estudar com muito interesse tudo o que se relacionasse com a história.
Os estudos secundários foram feitos no Liceu da Guarda. Em 1984, concluídos estes, entrei na universidade em Lisboa, no curso da licenciatura em história.
Mas Lisboa, apesar de gostar da cidade, ficava muito longe de casa onde não podia vir com a regularidade desejada. Daí que terminado o primeiro ano pedi e consegui a transferência para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Ali vim a concluir a licenciatura, em história, em 1989.
Terminada a licenciatura, comecei a “dar aulas” no ano letivo de 1989/1990, de português e história. Fui professor, uma série de anos, mesmo já depois de trabalhar no Arquivo Distrital da Guarda, em diferentes graus de ensino. Tive uma ou outra experiência como docente no ensino pós-graduado, na área dos arquivos.
Creio que se outra carreira não tivesse tido, me teria realizado profissionalmente naquela. O desafio ganho de conseguir “agarrar” uma turma, como o Professor Mendes Atanásio, ilustre professor catedrático de História da Arte, em Lisboa, me “agarrou” a mim, que até ia às aulas dele em dobro, era uma compensação que não aparecia na folha do ordenado, mas que para mim tinha muito valor.
Foi precisamente durante a apresentação de uma candidatura a um concurso anual para professores contratados que vi um anúncio de recrutamento de técnicos superiores para executarem um projeto de “inventário do património cultural móvel”, em arquivos, para a área do Distrito da Guarda. Pareceu-me muito interessante. Candidatei-me, fui selecionado e foi assim que em março de 1992, iniciei um percurso profissional na área dos arquivos que me trouxe até aqui. Portanto, o meu ingresso na carreira técnica de arquivos deu-se por um acaso que depois se revelou feliz.
Até ao ano de 1995 ou 1996, calcorreei, praticamente, todos os arquivos de câmaras, misericórdias e algumas irmandades do Distrito da Guarda. Foi uma experiência profissional única e extremamente enriquecedora. Descobrir documentos cuja existência era desconhecida, até pelas entidades que os detinham era, para mim, como achar tesouros. Achei muitos.
Entretanto ganhei algum gosto pelo estudo da história da minha região. Nessa altura, matriculei-me e vim a concluir, com algum sucesso, uma pós-graduação em História Regional e Local, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde apresentei um trabalho final sobre expostos (1998).
Depois, em 2004, concluí uma Pós-graduação em Ciências Documentais, variante de Arquivo, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Foram anos de muita e intensa aprendizagem. Fiz muita formação, nas e fora das universidades em áreas diversas: na área da gestão, da gestão da informação, entre outras.
Desde então e até hoje a minha atividade profissional principal tem sido a de técnico superior/arquivista (desde 1992) e depois de dirigente no Arquivo Distrital da Guarda (desde dezembro de 2007).
Pelo meio, tive uma ou outra experiência profissional diferente: de assessoria na área de cultura e, depois, na área da gestão, como administrador de uma empresa municipal (2003-2004).
Entretanto, fui fazendo alguma investigação na área da história moderna e do antigo regime. O acesso privilegiado a “fontes” nunca exploradas facilitava a tarefa e fui publicando alguns artigos e um ou outro trabalho de investigação. Fiz ainda alguns trabalhos para a época do antigo regime que até hoje aguardam melhor ocasião para serem revistos e publicados.
Dou aqui, como pedido, nota de duas publicações minhas. Uma, em coautoria, intitulada “Recenseamento dos Arquivos Locais: Câmaras Municipais e Misericórdias”, Vol. 13 – Distrito da Guarda, Ministério da Cultura (1999).“ Esta publicação resultou do trabalho de vários anos a percorrer e a inventariar os arquivos daquelas entidades, por todo o Distrito da Guarda. A partir de então eu não tinha dúvidas que arquivista seria a minha profissão.
Uma outra, uma edição crítica com estudo codicológico sobre o foral dado pelo rei Dom Manuel I, à Vila de Celorico da Beira, em 1 de julho de 1512. Este trabalho foi publicado, em 2012, quando se comemoraram 500 anos sobre a outorga de tal foral. A realização de um trabalho como este, relativo a um dos forais da terra de várias gerações da minha família, nomeadamente das minhas filhas, foi para mim uma grande honra.
(ARCHIVOZ) Como salientado, é Diretor do Arquivo Distrital da Guarda, desde 2012. Que balanço faz do exercício deste cargo?
(LMC) Dirijo, como acima referi, o ADGRD, ininterruptamente, desde 1 de dezembro de 2007. Completarei 14 anos como dirigente deste Arquivo em dezembro próximo.
Quando iniciei funções era dos dirigentes mais novos e menos experientes na direção dos distritais. Hoje integro o grupo dos que têm mais anos nestas funções.
Tenho ao longo destes anos feito frequentes e ponderadas autoavaliações do meu trabalho.
A tarefa de dirigir é indissociável da tarefa de avaliar: o nosso trabalho, o dos que trabalham connosco e do que em conjunto produzimos. Tenho frequentemente constatado que a avaliação que faço do meu trabalho é, quase sempre, mais severa do que a que é feita por outros.
Considero-me um desassossegado que procura quase sempre fazer melhor. E na maior parte das vezes tal é possível, o que não significa que sempre seja justificável. Gerir tem sempre a componente de tomarmos opções e de definirmos prioridades.
Apesar de muitos anos a dirigir este Arquivo Distrital, mas não só, uma das poucas certezas que tenho sobre a tarefa dos dirigentes é a de que um dirigente, por muita qualidade que tenha, nunca verá o seu trabalho ter (muito) sucesso se não tiver uma equipa motivada, empenhada, solidária (entre os seus elementos) e envolvida nos objetivos, hoje usa-se frequentemente uma expressão que não aprecio especialmente – “alinhada” com o serviço. Estes fatores são absolutamente críticos para o sucesso. Se a estes pudermos acrescentar a qualidade (técnica por exemplo), bons meios materiais e tecnológicos e a capacidade para inovar, aí temos todas as condições para atingir a excelência.
Produzir muito e bem com todas as condições, muitos o conseguem. Garantir produtividade e, pelo menos, alguma qualidade no que se produz, em condições de trabalho difíceis e com recursos escassos, não é para todos. Como nos sistemas de informação, o contexto explica muita coisa.
O trabalho feito nestes anos no ADGRD, partiu, desde logo, do muito trabalho feito pela dirigente que me antecedeu, a Dr.ª Cecília Falcão, cuja equipe técnica eu já integrava. Por isso, quando iniciei as minhas funções dirigentes no ADGRD, já conhecia muito bem “os cantos à casa” e tinha ideias muito precisas do que me propunha fazer.
A partir de 2012, passámos a dispor de novos meios tecnológicos que permitiram ao serviço ascender a um “patamar” mais elevado, em termos da gestão da informação e do acesso a esta por parte dos utentes. Os ficheiros, as fichas e os inventários (pastas com descrições arquivísticas impressas) foram dando lugar ao catálogo disponível em-linha e a pouco e pouco foram dispensados. Os microfilmes deram lugar às reproduções digitais. As fotocópias às reproduções digitais. Os pedidos apresentados por carta e depois por e-mail, deram lugar à submissão de pedidos num “balcão eletrónico” onde se faz a sua gestão e onde os utentes podem acompanhar, em tempo real, o tratamento dado a cada pedido.
O ADGRD, hoje tem no seu repositório mais de 180.000 descrições arquivísticas, que respeitam a 640 “fundos”/arquivos de outras tantas entidades. Cerca de 93% destas descrições foram feitas ao nível do documento simples ou composto – o que permite uma recuperação da informação bastante “fina”.
A partir de 2013, o ADGRD, iniciou a disponibilização de reproduções digitais de documentos que passaram a ser consultados e “descarregados” a partir do nosso repositório, livremente e sem custos.
Nesse ano, conseguimos logo, com grande satisfação, disponibilizar reproduções digitais de cerca de 900 documentos. Decorridos estes anos, atualmente, temos disponíveis “online” quase 380.000 reproduções digitais que respeitam a 17.852 documentos integralmente reproduzidos. Isto significa que em muitos casos ter acesso aos documentos já não implica uma deslocação ao ADGRD para os consultar.
Tudo isto foi feito com uma equipa que nunca ultrapassou os sete profissionais e que atualmente e nos últimos meses se reduziu a cinco, o menor número de trabalhadores no serviço desde que me lembro.
Não gosto de partilhar as minhas autoavaliações e também aqui não o farei. Ao fim destes anos os resultados alcançados e a avaliação que os utentes fazem permanentemente do nosso trabalho encarregam-se de responder por nós.
(ARCHIVOZ) O Arquivo Distrital da Guarda tem à sua responsabilidade um importante património arquivístico, nos mais variados tipos de suporte. Qual a dimensão do mesmo, que fundos e coleções gostaria de destacar e quais são os instrumentos de acesso à informação existentes, de forma a permitir a sua pesquisa e acesso?
(LMC) Em termos de dimensão física o ADGRD detém cerca de 2 km de documentos, na sua grande maioria manuscritos, sendo que toda a informação se encontra registada em suporte papel.
Tal documentação cobre um período cronológico que vai do século XVII ao século XX. Existe documentação mais antiga, mas indica-se aqui apenas as datas extremas que melhor caracterizam o acervo documental no seu todo.
A diversidade dos suportes importará muito menos do que a diversidade da informação naqueles registada.
Naturalmente, sendo o ADGRD um arquivo distrital, predomina a documentação cuja “incorporação” deve, por imperativo legal, aqui ser efetuada.
Assim, dos 640 fundos documentais, aqueles cuja dimensão é maior, em número de documentos e mesmo em dimensão física, são: os documentos paroquiais, os notariais e a documentação judicial. Além desta existe também uma diversidade informacional bastante grande que decorre da diversidade orgânica e funcional das entidades produtoras cuja documentação para aqui foi transferida. Muitas destas entidades foram já extintas há muitas décadas e até há séculos.
O carácter único dos documentos de arquivo, por si só, justifica a atribuição do valor que habitualmente lhe é atribuído, já para não referir que qualquer documento que é detido pelo ADGRD integra, nos termos da Lei, o património arquivístico nacional e, consequentemente, é documentação protegida e de conservação permanente.
Destacamos agora aqui, apenas, alguma da documentação de diversos organismos da administração distrital, como é o caso do Governo Civil, da Junta Geral do Distrito, a Comissão Distrital; a documentação dos diversos ofícios de tabeliães, de todo o Distrito, desde o sec. XVII-aos inícios do século XX; a documentação dos Juízos de Paz, da Direção de Obras Públicas do Distrito, onde existem numerosos documentos com peças desenhadas de edifícios, estradas, espaços públicos, etc., de todo o do Distrito da Guarda. Estes são alguns exemplos, mas o grande valor da documentação deste Arquivo, como já referi, reside na sua grande diversidade e no âmbito cronológico alargado desta.
A atribuição de valor a documentação, eu prefiro dizer informação, é, por vezes, um exercício extremamente subjetivo. Desde logo porque fazemos esta avaliação à luz dos nossos interesses e do nosso tempo. Mas a documentação detida pelo ADGRD é indispensável para conhecer a história, ou parte dela, da maior parte dos concelhos desta região e das comunidades que a integram, de muitas das suas instituições, da sua cultura e tradições, da história das famílias que aqui existem ou existiram ao longo dos séculos, etc. Portanto, independentemente das nossas necessidades, dos nossos valores e dos nossos interesses, a documentação detida pelo ADGRD tem um valor inestimável e deverá, por isso ser preservada e estar disponível para os cidadãos de hoje e do futuro.
(ARCHIVOZ) A difusão da informação é crucial em qualquer serviço de informação, para mais considerando o contexto de pandemia que tanto tem afetado o normal funcionamento dos mesmos. Pode dizer-nos o que tem sido feito nesse sentido no Arquivo Distrital da Guarda, desde que é seu diretor?
(LMC) A difusão da informação que refere pressupõe uma proatividade, por parte do ADGRD, na divulgação do património arquivístico que detém.
Do meu ponto de vista, a valorização do património arquivístico detido por qualquer arquivo está, sempre, relacionada com a facilidade de acesso à informação/documentação. Costumo dizer que um documento inacessível ou um documento a que não é possível ter acesso é (quase) um documento que não existe.
Ou seja, a importância dos documentos deste Arquivo e da informação neles registada ou, atrevo-me mesmo a dizer, de qualquer arquivo seja ele histórico como é o nosso caso ou de uma empresa por exemplo, decorre da importância e da utilidade de tal informação para as pessoas ou organizações sejam elas qual forem.
Uma das características, ou como melhor refere o Prof. Malheiro da Silva, das propriedades da informação, é ser sempre potencialmente dinâmica e, para usar um termo hoje muito em uso, reutilizável. Reutilizável por investigadores, pelos estudantes, pelas entidades produtoras (se ativas), pelos comuns cidadãos, etc.
Sendo o ADGRD um serviço público, tem obrigação de divulgar o património arquivístico que detém, junto do seu público-alvo. E este público-alvo, teve nos últimos anos um âmbito geográfico cada vez alargado e que ultrapassa as fronteiras do Distrito e até do país.
O Distrito da Guarda foi, desde os finais do século XIX, um alfobre de emigrantes e muitas centenas desses luso descendentes com origem neste Distrito, hoje espalhados pelo mundo, acedem ao nosso repositório em busca, por exemplo, de informação relacionada com a história da sua família.
Daí que, e especialmente nestes anos mais recentes, o ADGRD tenha investido muito na divulgação do seu património arquivístico, privilegiando os canais “web” – o seu sítio na “internet” e a sua página no “Facebook”. Tal divulgação assenta na seleção de documentos que se relacionam com factos históricos, manifestações culturais, eventos políticos, personalidades, curiosidades, etc., e damos-lhe destaque.
(ARCHIVOZ) E no que respeita à abertura do Arquivo Distrital da Guarda à comunidade, quais as atividades desenvolvidas de forma a alcançar esse objetivo?
(LMC) Esta é, sem dúvida, uma área onde muito poderíamos melhorar.
O ADGRD, tem, ao longo dos anos, estado sempre disponível para a realização de eventos culturais, nomeadamente em parceria, uma vez que os recursos disponíveis, nomeadamente humanos, para que o ADGRD possa por si só desenvolver atividades desta natureza normalmente não existem.
Estes dois últimos anos, praticamente, pelas razões conhecidas relacionadas com a pandemia, a realização de ações de abertura à comunidade e o acolhimento de visitas, exposições, etc., ou a realização, por exemplo, de dias abertos em que o público poderá ter acesso ao que habitualmente se não vê, como os depósitos e a sua organização, as tarefas de digitalização, etc., com o objetivo de dar a conhecer “por dentro” a vida do arquivo foram, obviamente, comprometidas. Ilustra o que se referiu o facto inédito de pelo segundo ano consecutivo, não ter dado, até agora, entrada no ADGRD, qualquer pedido nem ter sido acolhida qualquer visita de estudo.
Cremos que nos tempos mais próximos ações da natureza que referi ou outras, possam vir a ser desenvolvidas e realizadas. Esperemos que assim seja.
(ARCHIVOZ) A 11 de setembro de 2019 a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), o Arquivo Distrital da Guarda (ADGRD) e a Diocese da Guarda assinaram um protocolo de colaboração, com vista à prestação de apoio técnico, por parte da DGLAB/ADGRD, na área da gestão de arquivos, à Diocese da Guarda. O que nos pode dizer sobre os objetivos deste protocolo e quais os resultados já alcançados?
(LMC) Após a realização do protocolo que referiu, o ADGRD propôs à Diocese da Guarda, um plano de atividades para o ano de 2020, que identificava um conjunto de objetivos que se centravam em duas áreas principais: a avaliação da situação do arquivo diocesano e das condições existentes, a requalificação das descrições arquivísticas existentes, por forma a aumentar a sua conformidade com as normas nacionais e internacionais.
A grande prioridade, para nós e para a Diocese da Guarda era encontrar soluções para que o acesso à documentação histórica do Arquivo Diocesano pudesse ocorrer logo que possível.
Também neste caso a situação pandémica comprometeu muito os planos e os objetivos então propostos. Mas não os comprometeu totalmente.
Foi feito um trabalho de avaliação das condições existentes no Arquivo Diocesano, das intervenções de fundo que se impunham e que seriam indispensáveis à preservação do acervo e para que a abertura ao público deste arquivo pudesse ocorrer.
No ano em curso, até abril, as atividades relacionadas com a execução do protocolo subscrito no ano anterior e o apoio de apoio técnico não puderam deixar de estar condicionadas, uma vez que metade dos trabalhadores do ADGRD estiveram em teletrabalho. Mas, no entanto, não deixou de ser dada continuidade ao trabalho de requalificação de diversos instrumentos para recuperação da informação (catálogo), que respeitavam aos processos de ordenação (séc. XVI a inícios de XX), que habitualmente e erradamente diga-se, são conhecidos como processos “de genere”.
Também, nessa altura, foi preparado um contrato de depósito, que veio a ser subscrito no final de maio deste ano, pelo qual se acordou, a transferência faseada para o ADGRD, do núcleo documental mais antigo e que pelas suas características exige um maior esforço na sua preservação. Procurou-se também, por esta via, garantir que a disponibilização à consulta do referido núcleo documental, pudesse acontecer no curto prazo.
Neste momento, ocorreram já duas transferências de documentação, sendo que a maior das descrições arquivísticas e dos documentos a que estas respeitam já se encontram disponíveis para consulta, respetivamente, a partir do repositório e no serviço presencial de leitura do ADGRD.
Tudo faremos para que o número de documentos disponíveis para consulta, nomeadamente através do acesso a reproduções digitais e o número de descrições desta documentação venha ainda a aumentar até final do ano.
Para já, os resultados alcançados, isto é a disponibilização à consulta desde agosto passado, de um significativo número de documentos, já superou as nossas melhores expectativas.
(ARCHIVOZ) Quais os principais projetos que se encontram em curso e os que estão planeados ao longo deste ano e de 2022 no Arquivo Distrital da Guarda?
(LMC) O projeto de tratamento arquivístico da documentação proveniente da Diocese da Guarda e a definição de um quadro de classificação orgânico funcional que será a base onde vão assentar todos os níveis descritivos mais “baixos” (séries e documentos), são um foco importante do nosso trabalho atual. Este implica a realização prévia de um trabalho de investigação institucional cuidado e de avaliação, inventariação e caracterização informacional de todas as séries documentais existentes ou pelo menos da maior parte delas. Ou seja, é um trabalho de alguma complexidade técnica.
Obviamente que as grandes prioridades são, pelo menos, o alcance de todos os objetivos operacionais do serviço, o que dadas as circunstâncias ocorridas no primeiro semestre deste ano, decorrentes da pandemia e as circunstâncias absolutamente imprevisíveis que ocorreram no semestre em curso relacionadas com a diminuição de recursos humanos existentes, tornam difícil este desiderato. Tanto mais que o ADGRD, desde maio tem tido um grande aumento na requisição de serviços presenciais e sobretudo não presenciais que tem exigido a alocação da totalidade dos poucos recursos humanos disponíveis a tais tarefas. Neste momento há trabalhos técnicos, desde a descrição arquivística à execução de reproduções digitais que se encontram completamente parados desde julho. As circunstâncias não permitem fazer grandes projetos. É a realidade
(ARCHIVOZ) Tendo em conta o novo coronavírus (SARS-CoV 2) e a COVID-19, que, desde meados de março de 2020, alteraram profundamente a vida dos arquivos, o que nos pode dizer sobre as estratégias desenvolvidas no Arquivo Distrital da Guarda, de forma a enfrentar esta nova e difícil realidade, no que respeita à organização do trabalho interno, do atendimento aos utilizadores e na disseminação da informação?
(LMC) Em algumas áreas de trabalho, o impacto da pandemia foi “brutal”.
Houve áreas em que a execução das atividades ficou comprometida, mas não deixou de ser realizada. E houve atividades que pura e simplesmente deixaram de ser realizadas, porque não podiam sê-lo em teletrabalho e os trabalhadores presenciais eram em tão reduzido número que só podíamos dar resposta aos pedidos de informação e de reproduções certificadas que nos chegavam através dos serviços em-linha.
O serviço de leitura, em determinadas alturas pura e simplesmente fechou e quando reabriu, as condições de funcionamento eram algo limitadoras (limitações de lugares, obrigatoriedade de pré-agendamento, etc.).
A pandemia obrigou-nos a todos – trabalhadores e utentes, a adaptar-nos muito rapidamente a uma situação nova para todos.
Muita coisa teve de mudar: a articulação entre trabalhadores em teletrabalho e trabalhadores presenciais; a definição prévia e o planeamento do trabalho semanalmente; o acompanhamento do trabalho em execução por toda a equipa, feito com recurso a reuniões por “web conference” tornou-se uma rotina, por vezes diária; a comunicação entre trabalhadores e entre trabalhadores e dirigente passou a ser feita, quase exclusivamente, através de e-mail, telefone e WhatsApp; a gestão de pedidos passou a ser exclusivamente feita, e estamos a falar de centenas de pedidos por mês, através de um balcão eletrónico; o atendimento presencial passou a ser feito, durante muito tempo mediante pré-agendamento, etc., etc.
Os resultados, do meu ponto de vista foram muito melhores do que à partida se esperaria. De uma forma geral, trabalhadores e utentes adaptaram-se bem e depressa a estes novos procedimentos.
Seguramente, agora estamos aptos e, incomparavelmente, mais bem preparados para lidar com estas situações e com situações semelhantes que esperemos não voltem a acontecer nas nossas vidas profissionais e não só.
(ARCHIVOZ) Por último, gostaria que nos desse a sua opinião sobre o que pensa serem os grandes desafios e oportunidades com que os arquivos distritais se deparam na atualidade.
(LMC) Os arquivos distritais têm um conjunto de atribuições perfeitamente definidas.
Organicamente os arquivos distritais, são arquivos de âmbito regional dependentes da DGLAB, cuja área de atuação, no âmbito da gestão de arquivos, do apoio técnico a entidades públicas na gestão dos seus próprios sistemas de arquivo, entre outras, coincide com a área do Distrito, no nosso caso, da Guarda.
Hoje, no que respeita ao âmbito e às características da documentação detida, o Arquivo Distrital da Guarda continua e perspetiva-se que no futuro continuará a ser um arquivo regional, pois a documentação/informação e os sistemas de arquivo objeto do nosso trabalho são as entidades (produtoras) públicas ou privadas da nossa área geográfica/administrativa, seja ela, como até hoje, o Distrito ou outra que possa vir a ser definida no futuro num contexto de uma regionalização que há muito se fala.
Mas, o ADGRD, no que ao seu público respeita, deixou já de poder ser considerado um mero serviço local ou regional, focado especialmente nas comunidades onde está inserido. Atualmente, a maior parte dos serviços que presta dão, principalmente, resposta a pedidos apresentados por utentes de fora do Distrito da Guarda. São, atualmente, até identificados um número muito elevado de utentes que fazem os seus pedidos a partir do estrangeiro. Ou seja, o impacto da sua atuação extravasa, cada vez mais, a área do Distrito, até do país.
Só para dar uma ideia do que afirmo, no ano passado e relativamente ao ano de 2019, fizemos uma análise dos acessos ao nosso repositório DIGITARQ, que, como já se referiu, integra um “serviço” de referência e permite a consulta de reproduções digitais de documentos (em ambiente “web”). Verificámos então que durante o ano de 2019, mais de 20.000 de usuários tinham acedido/visualizado mais de meio milhão de páginas no repositório do ADGRD. A maioria destes acessos (ao DIGITARQ) foram feitos a partir da cidade de Lisboa (16,11%), São Paulo (7,82%), Porto (7,68%) e Rio de Janeiro (5,15%), só para referenciar as cidades a partir das quais ocorreram mais acessos (pesquisas, consultas de documentos, de descrições arquivísticas, etc.). Estas cidades superaram, em muito, a Guarda, a partir da qual apenas 2,6% de “usuários” acederam ao DIGITARQ.
Também temos constatado, cada vez mais, que o número de utentes/clientes presenciais tem descido de ano para ano e não estamos aqui a considerar os anos da pandemia. Simultaneamente os utentes não presenciais superam largamente os anteriores em número e em número de serviços prestados. Cada vez mais o acesso se faz remotamente.
Isto implicou a alteração da forma de trabalhar do ADGRD, bem como a forma como o serviço se passou a relacionar com os seus utentes. O trabalho em “backoffice” predomina em detrimento do “frontofficce” (atendimento presencial no ADGRD).
Por outro lado, a existência de um balcão de atendimento – balcão eletrónico, aberto 24 horas por dia e 365 dias por ano, fez disparar os pedidos de serviços de reprodução, entre outros, para números absolutamente impensáveis ainda há poucos anos. Tal tem obrigado a que para resposta aos pedidos apresentados se aloquem a estas tarefas, por vezes, a quase totalidade dos poucos recursos humanos disponíveis.
Isto comprova, indubitavelmente, que toda a informação que se encontra registada nos milhares de documentos detidos pelo Arquivo Distrital da Guarda, constitui um recurso extremamente precioso e necessário para os cidadãos e, também, para as entidades produtoras ainda ativas ou outras que deles necessitam para executar atividades suas (tribunais, notários, conservatórias, entre outras).
Retira-se daqui uma conclusão evidente, mas que, muitas vezes, os decisores não consideram, do nosso ponto de vista claro, devidamente: a informação que existe nos arquivos é um recurso valioso que deve estar acessível e ao serviço de todos os cidadãos, da comunidade e da administração pública.
Como se sabe, na esfera da administração pública existem centenas de quilómetros de documentos em “arquivo” absolutamente inacessíveis e em condições que não possibilitam a sua utilização. Muitos deles, se acessíveis, poderiam ser de grande utilidade administrativa, legal, etc. Outros deveriam, pelo valor da informação registada, ser conservados indefinidamente e integrar o património arquivístico nacional.
Este volume de documentação, cuja dimensão atual se desconhece, apenas constituiu um encargo para o Estado, pois, encontrando-se tais documentos absolutamente inacessíveis, nem as atuais entidades produtoras ou detentoras, nem os cidadãos os podem usar ou tirar partido da informação neles registada.
Transformar estes documentos ou se se quiser esta informação, num recurso que pode ser de grande utilidade para administração e para os cidadãos, dependerá, sempre, do tratamento técnico que lhe for dado e que permitirá: primeiro, tornar tal informação num ativo (conversão de um encargo num recurso); e depois, desencadear os procedimentos de avaliação adequados, para que apenas se invista na informação/documentação que justificadamente deva ser conservada.
Isto, é certo, carece de investimento, mas, também, será igualmente certo que dará origem à poupança de recursos, nomeadamente financeiros, muito significativos. Há estudos e informação suficiente que facilmente comprova o que aqui se afirma.
Nunca como hoje o acesso à informação foi tão valorizado. Exemplo disso é o facto de, atualmente, na economia mundial, algumas das empresas mais poderosas e lucrativas terem as suas áreas de negócio ligadas à informação ou à sua gestão.
Será uma pena que o atual Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) não preveja, tanto quanto sabemos, qualquer investimento para que os arquivos da AP, especialmente os arquivos ativos, possam vir a ser, no horizonte temporal da execução do referido plano, tratados e valorizados por forma a que a informação neles contida possa vir a ser utilizada ou reutilizada. Ou seja, para que haja um investimento que vise tornar tal informação/encargo num recurso/ativo ao serviço da administração e dos cidadãos.
Estes são, parecem-me, os grandes desafios relacionados com a gestão dos sistemas de arquivo do nosso tempo e no nosso país. Os profissionais da informação não podem deixar de ter aqui um papel ativo, na identificação dos problemas, na apresentação de respostas (para estes e outros problemas relacionados) e na apresentação de soluções.
Imagem cedida pelo entrevistado: Arquivo Distrital da Guarda.
Entrevista realizada por: Paulo Jorge dos Mártires Batista